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O sitiante Chico Piancó, vizinho de porteira do mundão de terras do meu tio Teodoro, um dia foi pegar carona nas panelas do Canadá. Se bem me lembro do que foi contado, isto aconteceu faz bastantes e remotos janeiros. E lá pelos mil e novecentos e segunda metade do século em apreço, quero dizer, no dito século passado.

Era um domingo, com direito a missa na ermidinha do sítio e tudo o mais. Para não perder a viagem, após o ato religioso e muitas confabulações preliminares, à hora do almoço, sentado à mesa e bem testemunhado, Seu Chico Piancó, a certo fiapo da conversa, achou por melhor fornecer consulta, de graça, a um dos párocos da freguesia. Estes, já useiros e vezeiros daquelas comilanças dominicais, no sítio a légua e meia do ainda distrito, Palmácia, cidade só muitos anos depois virada município.

Cerca de espaço de mês, um dos irmãos sacerdotes – ou o padre Pedro ou o padre Joaquim – costumava ir “dizer missa” nas águas do Canadá. E estes dois reverendos tinham fogão e confessionário estabelecidos na tal Palmácia, urbe que ainda hoje cavalga um dos muitos vértices do Maciço de Baturité.

Pois dessa feita tocou ao padre Pedro vir da antiga Palmeira dos Queiroz para celebrar a missa mensal na capela, alto arriba da casa-grande do velho e ricaço Teodoro. Essa missão pastoral, aí, os dois curas, com muito gosto, já realizavam, durante anos. Somente, vez ou outra, por motivo maior, é que o compromisso religioso ia para o brejo.

Com todo o pessoal posto à mesa, de comprimento e largura, um estirão de mesa farta, visita ilustrada do sacerdote, e meu tio à cabeceira, feito mandachuva. Também, na maior boa, Seu Chico Piancó, mesmo antes da refrega de pratos, já lá estava a saborear uma coxa de galinha, mas talvez até fosse peru, quando ao anfitrião queixou-se, em homilia de confabulação, o piedoso padre Pedro:

– Seu Teodoro, por último, eu ando sentindo umas tonturas... Não sei do que se trata. Por isso que faltei no mês passado. E o Joaquim, também, esteve entrevado. Pode ser pressão alta; às vezes, só falto ir ao barro!

Mais que depressa, tirando maleta de médico da boca, o matuto visitante, que era doido por celebrações religiosas, talvez a temer que o oficiante das missas pudesse, um dia, bater as botas, saiu-se com essa arrumação de papo, prescrevendo e explicando, ao pé da letra, até as vírgulas da bula. E a receita de esculápio experiente e de bom doutor, passado na casca do alho, saiu nestes termos, assim:

– Vossemecê sabe de uma coisa, padre, minha fia andou assim, tombem, com essa tonteira. Era uma fraqueza danada!... O sinhô deve é de se incarcá nos óvo. Basta vossemecê tomá dois, mornin e mole, viu, de menhãzinha e de noite. Ih, ovo mornin é bom pra quem tá fraco. Foi o q’eu fiz cum Maria. Incarquei os óvo nela, incarquei os óvo... Maria tá lá, boazinha, pra contá a históra.

Meio desmontado dos quartos, aí o vigário enviesou o rabo do olho para o titio. Quase já indo bater na sala de cirurgia, e sentindo a dor fininha do bisturi no sangue, esboçou de leve um sorriso amarelado, entre desenxabido e inodoro, deveras sem sal e sem paladar.

O velho Teodoro, que era bicho muito escovado nessas linguagens dos compadres da redondeza, então fez avanço de gladiador romano e partiu para cima, com diplomacia, óbvio que querendo salvar o padre Pedro muito mais da faquinha de doutor formado do Seu Piancó que do vexame da prosa desconchavada. E meu tio torceu o rumo da conversa. Num instante, aligeirado, passou esponja no parecer médico do sitiante das Brenhas de Dentro, bem assim num jeito macio de pé de coelho:

– Meu compadre Chico Piancó, hein, homem de Deus, e a safra da cana, este ano, você acha que vai ser das melhores?

Esse papo furado, de fato, com as naturais variantes da terminologia, foi acontecido verídico que se deu à mesa do Canadá, nas abas da serra. Não é potoca nem lorota, de jeito algum. O diabo é que já se estava, ali pelos meados de dezembro, todo mundo com os olhos no Natal, e a moagem da cana-de-açúcar, para o fabrico da rapadura, agora, só se iria acontecer no ano vindouro, pois que se efetivava sempre no mês de junho.

Lapso de memória à parte, a intervenção desprecatada do velho Teodoro, que servira de bombeiro, até que surtiu efeito. E, para alívio geral dos outros comensais, que se reprimiram, sem rir nem pestanejar, a batina bege do padre Pedro ficou imune de tornar-se, ali mesmo, à mesa do banquete, por conta da meizinha de ovos do Seu Piancó, uma branca bata hospitalar.

Fort., 31/07/2010.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 31/07/2010
Reeditado em 31/07/2010
Código do texto: T2410901
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