Consciência Caída
Ela era conhecida como “Maria, a louca”. Que destino cruel aquele. Era como não existir. Na verdade, só as crianças a viam. E quando ela passava com suas roupas de várias cores, era uma grande festa. Os meninos corriam em sua direção e gritavam seu nome. Algumas vezes chegavam a ofendê-la e uns mais atrevidos puxavam-lhe a roupa. A cidade inteira ficava alheia a tudo que lhe dizia respeito. E, para falar a verdade, ela também não parecia se importar tanto. Talvez quisesse mesmo o esquecimento. Mas os meninos existiam e atrapalhavam o seu alheamento. Então, ela saía correndo e trancava-se na igreja até que eles fossem embora. Sentindo-se em segurança, abria a porta e andava em direção ao rio. Ficava horas e horas sentada às margens observando a paisagem e rindo sozinha. Parecia ver milagre. E a falta de beatificação lhe imprimia obscura e atenta intuição. Mas a dor ainda existia tranqüilamente: ver milagre não a salvava da dor.
Um dia deram-lhe um porre no bar que ficava no centro da cidade. Lembro-me como hoje: ela saiu bêbada, pelas ruas, dizendo sandices e arrancando as plantas da praça. Não vi uma pessoa sequer com intenção de ajudá-la. Eu mesmo fui imobilizado por uma sensação desconhecida e amarga. Mas eu estava de passagem, aquilo tudo não me dizia respeito, nada ali fazia parte de mim. Fiquei atônito e, de braços entregues, não fiz nada. Da janela do hotel acompanhei-a com olhos surpresos e cheios de remorsos. Havia algo naquilo tudo que me condenava. Era para isso que me tinham enviado à vida, ao mundo?
Continuei com olhos fixos na louca. E não acreditando no que em poucos segundos aconteceria, desviei o olhar. O grito foi cortante e dilacerou minha alma. Não, eu não podia abrir os olhos. Minha mente, curiosa e fértil, trazia imagens estarrecedoras, fazendo meu corpo paralisar-se por inteiro. Depois de minutos, estupefato, vislumbrei aquela cena que chegava até mim em câmera lenta. Muitas pessoas, um caminhão parado, o espasmo e a mulher, deitada no chão quente. Ela trazia ainda suas roupas engraçadas, mas estas agora estavam manchadas de um vermelho intenso e vivo. Fechei a janela e deitei-me na cama. Passados trinta minutos, levantei-me bem devagar e arrumei as malas. Desci as escadas e fui embora.
Depois de um ano, voltei à cidade. O que me trazia ali não eram assuntos profissionais, mas uma espécie de falta, como se algo meu estivesse perdido naquela paisagem. Caminhei da rodoviária até o centro, onde o pequeno comércio movimentava as vidas dos habitantes. As ruas estavam do mesmo jeito e a poeira que os carros levantavam ainda me incomodava, tão insistente como antes. Vi as pessoas, as casas, a praça, o bar. Tudo igual, nada sobrava naquela fotografia. No entanto, não poderia afirmar que se tratava da mesma visão daquele dia quando, debruçado na janela do hotel, via passar as diversas cores de trapos, de sol e de céu.
Continuei andando lentamente. Na saída da praça, detive-me. Uma confusão de sentimentos percorreu meu corpo causando um terrível mal-estar. Era demais para minha compreensão; e a odiosa piedade que me tomava, soava como o maior dos insultos. Na ponta da calçada tinha uma grande estátua que só acreditei ser de quem era quando li o escrito: “Em homenagem a uma pessoa amada por nossa cidade”. Embaixo, espremido no espaço de um retângulo, seu nome: Maria dos Anjos e Silva. Não sabia quanto à sinceridade daquelas palavras, mas prometi em nome de Maria, a louca, nunca mais voltar.