Falecido: Januário Feliciano Barnabé

Não devia ter me oferecido para ir à farmácia. A Dona Juraci não está tão mal das pernas o quanto diz. Mas dizem que é bom fazer uma boa ação, principalmente para os mais velhos, e ainda mais sendo vizinha, ou vice-versa... Espero que o Criador tenha notado meu esforço. Não é fácil caminhar por essas calçadas esburacadas, em dia de chuva. Ainda mais quando se está de ressaca.

Por certo a Dona Juraci teria sido tragada por algum daqueles buracos da calçada e na certa nesta hora estaria tagarelando e contando vantagens de suas doenças com alguma comadre, lá na mansão dos mortos. E estaria já na companhia do marido, há muito falecido. Bom homem aquele, sempre me pagava um conhaque, quando a prata me faltava. Mas não devia ter mesmo ido à farmácia, não hoje...

É que na volta da farmácia, tive de vir pelo outro lado da rua, para evitar as poças d’água que nossa cidade ostenta em dias de chuva, como hoje. E eis que ao voltar pela calçada de lá, passei em frente ao velório municipal, onde vi um conhecido meu em prosa com um desconhecido meu, mas que era conhecido dele.

Eles estavam parados frente a um papel fixado à entrada do velório, boquiabertos, com aquela cara de nada. No papel dizia assim: “Falecido: Januário Feliciano Barnabé. Enterro às 15 horas.”.

O desconhecido perguntava ao meu conhecido:

-Conheceu o fulano?

-Conheci sim, boa gente esse finado.

-Morreu de quê?

-Estão dizendo que foi de cirrose. Ele bebia desde muito jovem, e aos quarenta e dois, já estava curtido. Suas veias nem sangue tinham mais, só caldo de cana!

E assim entre risadas disfarçadas e caras de nada, se deram as mãos, a despedir-se, e escorreram dali. Preferi não entrar para ver o defunto. Apenas dei uma olhadela lá pra dentro, o que de fato não devia ter feito. Lá estava a Dona Catarina, com a sua inseparável irmã, a da cadeira de roda. Religiosas, fervorosas, na certa velaram o defunto a noite toda, rezando em seus inevitáveis sotaques lusitanos. Ah... como são perigosas essas línguas... Assim que o padre jogasse a água benta na testa do morto, e o liberasse para o enterro, seria só o tempo de o coveiro pôr o último tijolinho na cova, que as megeras lusitanas dariam início aos seus escárnios e mau-dizeres, tecendo qual renda portuguesa, a má-fama do falecido.

Mas o pior foi ver o Aristodemo e o Germano sentados num banco, perto da coroa de flores. Ainda bem que não me viram. Bom, àquela distância, não enxergariam mesmo, pois o Germano é caolho, e seu primo Aristodemo usa um óculos fundo de garrafão.

Eles mantinham, orgulhosamente, um costume de sua terra, de mil novecentos e antigamente, quando ainda se velava o falecido em casa. Consistia em tomar um gole de cachaça em honra ao defunto. No dizer deles, “beber o defunto”. E lá estavam eles “bebendo o defunto”...

Ocorre que fiquei devendo um dinheiro para o Germano, e, sabendo que ele não é de perdoar um centavo sequer, foi que me fatiguei de vê-lo ali. O Germano esconjura até o Santo Padre, no caso de lhe faltar um ou dois reais no pagamento do aluguel, e esse era justamente o meu caso, acrescido de algumas centenas de reais a mais.

O Germano e a mulher do Aristodemo eram carne de pescoço. A infame, que corneava o coitado do Aristodemo com o Juscelino da padaria, de certo estava à beira do caixão recitando a caderneta e os valores que o falecido ficara devendo na padaria.

Bem que o compadre Zé Antônio me disse certa feita: dever pra essa gente é dever pra mãe do cão...

Ainda bem que ninguém ali me viu. Só o dono da venda, o Lourenço. Acenou pra mim, com os olhos esbugalhados, como sempre. Ele na certa logo vai também, pois pelo que sei, a cirrose dele já ta pra lá de nervosa. Coitado, já estava mamado, logo pela manhã, não sei como me enxergou..

Bom, na volta à casa pensei em tomar um banho e passar na vendinha, que não é longe. Tomei uma, antes de ir pro enterro. Fiz questão de ir vem quem estaria lá no cemitério. Mas antes ainda pensei que daria um tempo pra uma partida de bilhar. Provavelmente só o Juca estaria na vendinha hoje pra jogar bilhar. Aliás, aquela venda anda às moscas. Quando a bebida finalmente acabar de me matar, farei falta lá. Como o Juca não estava lá na vendinha, não joguei bilhar, e só as moscas me fizeram companhia. Devo estar mesmo condenado às moscas e aos vermes...

Chegando ao cemitério, ainda dava um tempo, antes do enterro, então aproveitei para dar uma passada na tumba dos parentes. Visitei um por um, só não fui na tumba da nona Filomena e do tio Lázaro, porque esqueci a quadra. Pensei que tinha uma bala de menta no bolso, mas devo ter perdido. Passei tão mal ontem, que nem lembro onde botei minhas balinhas. Sempre as carrego pra disfarçar o hálito, aprendi isso com papai.

Puxa, a chuva apertou. Estão levando o caixão debaixo de chuva. No cortejo dos guarda-chuvas, só tem quatro guarda-chuvas. Quatro pessoas! E um deles é o coveiro! Lá estava também a Maria Louca, puxa, até de baixo de chuva ela veio! Ninguém sabe ao certo o nome dela, por isso a chamam de Maria Louca, pois que é completamente pinel, coitada. Ela fala sozinha e todos os dias baixa no cemitério, pra acompanhar os enterros. Jamais se aproxima dos parentes e amigos dos falecidos, fica só a olhar de longe, escorada em algum túmulo.

Vou perguntar a ela se ela já está sabendo quem morreu hoje. Me disseram que ela não sabe ler, fica olhando os avisos de enterro na entrada do cemitério, esperando alguém lhe dizer o nome do morto do dia.

-“Januário Feliciano Barnabé” - disse-lhe eu, e a deixei quieta ali, pois não gostei do ar piedoso com que me olhou... sou pé de cana, confesso, mas não gosto que tenham dó de mim.

Pronto, o coveiro já cimentou a cova. E como previsto, as irmãs portuguesas já iniciaram seus enfados:

- “Olha se não é o filho do finado Chico Barnabé!”

- “Tirando o coveiro e a velha Maria que vê fantasmas, só nós duas viemos ao seu enterro!”

- "Morreu um dia depois da vizinha dele, a Dona Juraci..."

Veja como é a vida. Tudo é estranho, ninguém imagina como é depois da morte. Dizem que a gente revê toda a nossa vida como num filme. Sei lá. Se assim for comigo, acho que vou ter de ouvir de novo as palavras murmurantes de mamãe, repetidas tantas mil vezes: “Januário meu filho, pare de beber!”

E agora Januário?

Eron Levy
Enviado por Eron Levy em 09/07/2010
Reeditado em 29/11/2012
Código do texto: T2368626
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