A MÁ NOTÍCIA (Parte I)

(PARTE I)

Eram quase dez da manhã. O sol estava escaldante quase rachando moleira de tatu novo, quando Biu Sulino acordou-se com os gritos vindos do lado de fora da janela do quarto.

Era Bimba de Gato, um meninote de aproximadamente doze anos de idade. O coitado estava com os bofes quase pra fora de tanto correr.

Eram quase cinco quilômetros entre a cidade e o vilarejo onde ficava a casa em que Biu havia passado a noite na farra, indo dormir ao clarear do dia agarrado com Dona Lulu. Isso mesmo, Dona. É assim que são chamadas as amantes dos pobres. As dos ricos são simplesmente Senhoras.

Biu ainda sonhava com anjinhos pelados e carneirinhos felpudos, quando escutou os berros do garoto.

- Seu Biu! Ô seu Biu! Se o senhô tivé aí atenda home de Deus que a coisa tá freuvendo pro seu lado! Madrinha me mandou dá um recado pru senhô. Seu Biu, ô seu Biu o senhô tá ai?

Lá dentro, o dorminhoco não sabia se estavam lhe chamando de verdade ou se era no sonho.

Como o moleque continuava a gritar, aos pouco ele reconheceu a voz e percebeu que era real. Deu um pulou da cama e já foi respondendo aos berros:

- O que é nego safado que tu vem me acordar numa hora dessas da madrugada? Se não for uma coisa séria vou te encher as fuças de pancada, que vai levar mais de trinta dias pra alguém ver a cor dos teus olhos de novo.

- Que madrugada que nada home. Acorde que a coisa é séria seu Biu!

- O que foi que aconteceu moleque? Me diga logo antes que eu perca a paciência contigo!

- Madrinha mandô lhe encontrá onde o senhô tivesse pra avisar que os preso fugiru da delegacia.

- Que merda de notícia é essa que tu tá me dando rapaz?

- É verdade seu Biu. O povo da cidade tá num alvoroço só com o causo e tá todo mundo com as porta atramelada com medo da bandidage. Tão tudinho sem saber o que fazê. Eles acham inté que os cabra mataru alguém na hora da fuga, pois tem rasto de sangue na rua, e tão tudo aperreado atrás de notícia sua.

Biu ainda com os olhos cheios de remelas e a cabeça latejando por dentro do oco do juízo, botou-se a pensar pra saber o que dizer a sua mulher Susana, e ao povo. A mente se negava a trabalhar, por ainda estar sobre os efeitos da péssima aguardente que ele havia bebido na noite anterior. Depois de tanto espremer os miolos, a ponto de causar um curto circuito nos poucos neurônios, teve uma idéia. Não era lá grande coisa, mas foi o que deu pra arrumar naquele momento de apreensão e nervosismo.

- Diga a Susana pra avisar ao povo que eu mesmo já descobri a fuga e desde as primeiras horas da madrugada que eu tô no encalço desses safados. Diga também que daqui pra mais tarde eu chego com novas noticias do ocorrido.

Peça pra avisar lá na casa do prefeito, coronel Ludurgério Barbosa, que já estou até indo pedir um reforço policial ao delegado de São Luiz do Quitunde, porque os bandidos se embrenharam praquelas bandas e não vai demorar muito pra eu botar tudinho de volta no xadrez.

Bimba já ia saindo quando escutou o ultimo recado, dessa vez o mais importante de todos.

- E não se esqueça seu safado, se disser pra alguém que me encontrou aqui, na casa de Lulu, eu lhe capo os ovos e dou pros cachorros comer!

- Precisa disso tudo não seu Biu que eu não sô doido de fazê uma fofoca dessa com o senhô. E se madrinha perguntá onde lhe encontrei o que digo?

- Diga que me encontrou na estrada a caminho de São Luiz.

Bimba molhou a cabeça na bica do lado de fora da casa, pra espantar o calor, deu meia volta e desapareceu no oco do mundo rumo à cidade.

Biu voltou pra dentro da casa, sentou-se numa das cadeiras da cozinha, botou as mãos no rosto e começou a chorar. Era um choro fino desses de cachorro novo perdido da ninhada sem saber que rumo tomar.

- O que vou fazer agora Lulu, pra sair dessa enrascada? Perguntou Biu a mulher que estava mexendo numa panela sobre o velho fogão a lenha. Madame Lulu veio em sua direção abraçou-o carinhosamente, acariciou sua cabeça num gesto de consolo e lhe disse com voz branda:

- Vá tomar um banho pra esfriar o juízo. Enquanto isso as idéias vão aparecendo e você há de achar uma solução para esse caso.

Biu foi fazer o que ela sugeriu e se sentiu melhor. Depois tomou uma xícara de café bem forte que Lulu havia preparado, enrolou um cigarro de palha, acendeu, deu uma tragada longa e enquanto prestava atenção na fumaça que saia da ponta do cigarro ficou pensando na situação.

Queria nessa hora os conselhos do pai, Seu Salustiano, mas esse já havia morrido fazia tempo. A mãe também partira antes dele e era capaz de não restar mais nem o pó dela na sepultura, pra servir de testemunha de sua existência.

Depois de uma boa meia hora de pensamentos ele resolveu agir. Foi para o quintal, onde estava descansando Suvaco, seu pangaré de terceira categoria na escala dos eqüinos, jogou a cela por cima do animal, apertou os arreios, montou e se despediu de Lulu:

- Vou até são Luiz falar com o delegado. Tranque as portas e só saia quando lhe mandar notícias que está tudo calmo.

- Tá certo respondeu a mulher enquanto Biu ia saindo.

.

A distância até lá era de dezoito quilômetros e levaria bem uma hora e meia de cavalgada se Suvaco não fosse tão devagar. O cavalo já não agüentava mais tanto rojão. Além de velho tinha uma bicheira que começava na napa da cela e se estendia até o espinhaço. Aquilo doía a cada passo que dava, por conta do peso do cavaleiro, amassando aquela ferida que nunca cicatrizava.

Biu já tinha tentado tudo quanto era remédio, mais nada do ferimento sarar. Até Maria do Socorro, rezadeira renomada de São Miguel dos Milagres, que já havia tirado até espírito ruim no povo, veio, rezou e benzeu o coitado com uns matos que ela dizia serem milagrosos, mas nada de curar essa criatura. O coitado, além da bicheira nas costas, só tinha mesmo o bucho e as costelas por debaixo daquele couro velho desbotado pelo tempo e sustentado por quatro canelas secas. Se fosse mesmo pra medir e pesar na idade dos quadrúpedes, Suvaco já estava ha mais de dez anos fazendo hora extra aqui na terra.

Se o leitor acredita e entende dessa matéria de reencarnação, coisa que eu não consigo, deve saber se bicho de vez em quando pode nascer gente ou vice-versa. Se isso for possível de acontecer um dia, com toda certeza, ele já veio ao mundo como gente e voltou como cavalo só pra pagar os pecados da outra vida.

Como dizia a madre superior: “É pra se lascar no meio que nem pé-de-cabra”...

Herivaldo Ataíde
Enviado por Herivaldo Ataíde em 11/06/2010
Reeditado em 13/06/2010
Código do texto: T2312958
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.