Fio de Cabelo
O orgulho de Maria de Lourdes era o cabelo de Clodoaldo. Desde o primeiro dia que ela o viu, no footing da praça, apaixonara-se perdidamente, Para o casamento foi um pulo. Há dez anos casados, não tinham filhos, fato que proporcionava uma vida conjugal tranqüila, na pequena cidade do interior. Ele, funcionário público, na Prefeitura, era sempre alvo de inveja por parte dos colegas de trabalho, pois Lurdinha, era uma mulher lindíssima, sempre cobiçada por todos. Aldinho, como ela o chamava, não ligava e fazia troça com os amigos.
- Se algum de vocês tivessem o mesmo topete que eu, talvez me importasse.
E assim iam vivendo, sem maiores sobressaltos. Lurdinha cuidava da casa. Duas vezes por semana costurava para os pobres, com suas amigas da paróquia, saiam nos fins de semana para um carteado na casa de Armando e Gracinha, tudo com uma tranqüilidade, que era por todos comentada.
Ela era a responsável por passar quase que diariamente, na farmácia do seu Osvaldo, para comprar colônias, gumex, glostora e seivas, pentes de osso e todas as novidades da televisão, nos comerciais das novelas, que pudessem chegar à cidade.
Cada vez que Clodoaldo ia sair de casa, fosse para passear ou ir ao trabalho, o ritual se repetia: lavava os cabelos com sabão de cinza, aplicava o gumex, que Lurdinha preparava com água morna, molhava o pente de osso com água de colônia e esculpia aquele topete, que tanto enchia a mulher de amor e sedução e lá ia Clodoaldo todo “pavoneado” com sua “cúmplice”.
Certa manhã, como em todas as outras, Clodoaldo se arrumava no banheiro para ir trabalhar, quando um grito de pavor fez com que ele acordasse do seu devaneio capilar e num só passo, atravessou a porta e entrou aos trancos no quarto. Lurdinha sentada na cama, como que num transe hipnótico, olheiras que transfiguravam seu lindo rosto, uma pequena espuma no canto da boca e com a aparência que tinha visto alma de outro mundo, apontava para o travesseiro de Clodoaldo, onde jaziam, três fios de cabelo.
Ele, sem saber ao certo o que acontecera, levou tresloucado, as mãos aos cabelos, donde penderam mais uns três fios, pasmo, teve a fatídica constatação: seus cabelos estavam caindo.
-Não, não pode ser verdade! – exclamou assombrado.
Mas para não piorar o estado da mulher, que já o fitava com fúria, tratou de acalmá-la.
- Calma meu bem. Deve ser algum produto vencido, ou mal preparado pelo seu Osvaldo. Calma que vou até lá e acerto o passo daquele velhaco.
Lurdinha, mais que depressa se levantou, tirou a camisola, se enfiou no vestidinho florido, do dia anterior, igual a tantos outros que tinha, calçou as tamancas e disse:
- Vou com você, vamos tirar satisfação com aquele pilantra.
E saíram os dois pelas ruas, como doidivanas em carreira, em direção à farmácia.
Na rua, as pessoas que os conheciam não acreditavam no que viam. Clodoaldo todo despenteado, com a calça de pijama, chinelos e Lurdinha com o vestido amassado, mal arrumada, sem maquiagem e igual a uma procissão de Santa Bárbara, padroeira da cidade, todos se enfileiravam atrás do colérico casal.
Na farmácia, seu Osvaldo levou um susto tremendo ao vir entrar aquela multidão e quando em meios a gritos, palavrões e maledicências entendeu o que acontecera, respeitado como era, pediu calma a todos e explicou.
-Calma seu Clodoaldo, isso é próprio da idade. Quando uma pessoa atinge seus trinta e poucos anos, é normal que isso aconteça. – e com muita calma e firmeza, depois de prometer que iria ele mesmo preparar um elixir, para uso tópico, convenceu o casal a voltar para casa.
Naquele dia, o que não acontecia há mais de quinze anos, Clodoaldo não foi trabalhar, preferiu ficar com a mulher, que simplesmente não se conformava.
Há essa hora, a notícia já tinha percorrido toda cidade e como tudo em corrente, aumenta, logo começaram a chegar as pessoas: a mãe com um chá de Jaborandí, infalível, a sogra com ar de quem já duvidava da virilidade do genro, Armando e Gracinha, o prefeito telefonou, o padre queria saber se encomendava missa, o gerente do banco pra saber da situação financeira, até que apareceu o farmacêutico, com o famoso elixir, acalmou a multidão e colocou toda a gentarada para fora.
- Olha seu Clodoaldo, o senhor aplique esse elixir três vezes ao dia e em uma semana seu cabelo não vai mais cair.
Desconsolado, mas acreditando na palavra do velho “doutor”, concordou e depois de fazer uma aplicação generosa nos cabelos, deu um calmante pra Lurdinha e foram dormir.
Clodoaldo mal pegou no sono, imaginando toda a sorte de desgraça que recairia sobre ele, com a perda do seu lindo topete.
Como se a noite tivesse passado num sopro, a manhã encontrou Clodoaldo atônito, pois lá estavam de novo, no travesseiro, três famigerados fios de cabelo.
Como se a vida ruísse em cima da sua cabeça, aplicou de novo o elixir e foi ao trabalho, mas o topete já não era o mesmo. Cabisbaixo, teve que ouvir as pilhérias de seus colegas, que, agora, caíam como uma bomba no seu descabelado ego.
No almoço, Lurdinha mais parecia uma “zumbi”, nada dizia e para o nada olhava, num profundo estado de prostração.
E assim foram os dias se passando, a indiferença dela aumentando proporcionalmente aos cabelos caídos de Aldinho.
De tudo ele tentara. Simpatias, merda de galinha com enxofre, até pólvora preta com limão, que diziam, era bom pra sarna, mas nada resolvia.
Certo dia após o expediente na Prefeitura, seu amigo Armando o encontrou num botequim, sentou-se ao seu lado e confidenciou:
- Escuta, amigo velho, sei da sua crendice e da sua devoção por Santa Bárbara, mas conheço alguém que pode te ajudar.
- Quem é? Perguntou exaltado Clodoaldo – a essa altura, qualquer coisa serve, estou perdendo minha querida Lurdinha.
- Bom - titubeou Armando - fica lá pros lados da casa de rinha de galo.
- Fala logo, eu aceito, não importa o que seja.
- É um centro de Umbanda, onde o Pai de Santo, seu Zezinho de Ogun faz verdadeiros milagres.
- Vamos lá – animou-se Clodoaldo – vamos lá agora.
E partiu para o local, sugerido pelo amigo. Lá chegando, numa casa velha, de onde se ouviam cantos, gritos e batuques e na porta podia-se ler, “Centro de Umbanda Caboclo Véio”, entraram.
Seu Zezinho como toda a cidade, já sabia do acontecido, chamou Clodoaldo e foi logo dizendo:
- Escuta aqui mo fio, pra ocê se ajustá co’a sua muié, vai tê que fazê o que eu mandá.
Clodoaldo animou-se, pois notara que o pai de santo ostentava uma rica cabeleira, digna dele mesmo, em outros tempos.
-Tudo, tudo o que o senhor disser.
- Pois muito bem. Ocê vai pegá um fio dos pelo, das parte da sua muié, amarrá com um fio de cabelo seu, e tudas quarta-feira, ocê vai lá pros lado do bananal do seu Juquinha, faiz um corte no tronco da bananeira, enfia ali os fio amarrado, reza pra sua santa de fé, por duas horas e dispois vai s’imbora.
Clodoaldo não pensou duas vezes e seguiu a risca o aconselhado.
Uma, duas, três, quatro semanas se passaram e Lurdinha já dava sinais de melhora.Sorria, cantarolava o dia inteiro, voltou às costuras e tratava bem o Clodoaldo. Mas o cabelo dele continuava caindo e ele percebeu que Lurdinha já não ligava para isso. Achava que com o tempo tudo voltaria ao que era, pois o que importava é que ela estava feliz.
Meses se passaram e Lurdinha agora se parecia como antes, alegre, feliz, mas nunca mais tocou no assunto de cabelo.
Já cansado de tanto arrancar pelos e cabelos, e achando que tudo estava resolvido, Clodoaldo, numa quarta-feira, não fez a simpatia, saiu do trabalho, passou no botequim, tomou uma “caninha” com os amigos e foi para casa. Entrou em casa e ouviu uns ruídos vindos do quarto, de mansinho abriu a porta. Tomou um susto quando descobriu nus na cama, em tórrido e voluptuoso contraceno, seu Zezinho de Ogun e Lurdinha,
Fechou a porta do quarto, pegou o facão pendurado na parede, segurou-o com força e com muito ódio no coração, foi até o armário da sala, pegou um fio de cabelo próprio e um pelo de Lurdinha, que estavam em uma bolsinha, e voltou ao Bananal.