O MORRO DO CRUZEIRO NÃO TINHA ESSE NOME NÃO!

Era tarde quase noite. Uma tempestade se avizinhava e um caixeiro- viajante para não ser surpreendido por ela resolvera pegar um atalho. Ganharia quase uma hora se por ali seguisse. Ele bem que conhecia aquelas veredas pois ali nascera e crescera. Também conhecia todas as histórias que o povo contava sobre aquele lugar. Alguns acontecimentos fizeram daquela gleba um lugar assombroso, tanto que aquele atalho outrora tão utilizado acabou sendo abandonado. Só algum amalucado se arriscava por ali. Como nunca vira em sua vida nenhuma assombração ou coisa do gênero, o caixeiro resolveu encarar a passagem, pois além de chegar mais cedo à cidade, também se livraria da chuva.

Caro leitor! para um bom entendimento sobre o que ocorreu, nada melhor que recuarmos no tempo.

Havia naquela gleba e ainda há, um morro que se chamava “morro das pedras”. Ainda é possível ver ali alguns resquícios do que fora há muito tempo uma pedreira tocada por mãos escravas. Próximo a esse morro havia uma fazenda de cacau a perder-se de vista onde uma casa grande destacava-se em meio ao verdor daquela exuberante mata.

Era uma casa de muitas janelas. Lá moravam três meninas, filhas legítimas da senhora Almerinda e do senhor Belizário, respeitável cacauicultor daquela região. E eram Clementina, Rosalva e Vasti. Por razões desconhecidas a caçula Vasti com três anos de idade ainda era pagã. Um dia por descuido de alguém, ela sumiu na mata, nunca mais foi encontrada. Então foi dada como morta. A partir daí comentavam os moradores da região que coisas estranhas passaram a acontecer ali naquele local. A crença era que por ter morrido pagã, a alma daquela criança pervagava atormentada e atormentando.

Com a crise econômica fazendo o preço do cacau despencar vertiginosamente, muitos fazendeiros foram à bancarrota, inclusive a família do senhor Belizário que acompanhando a maioria mudou-se da região deixando tudo para trás.

Então a casa das meninas com o passar do tempo foi se decompondo, se reintegrando ao chão e à floresta como qualquer ciclo natural da vida. Mas na proporção em que o tempo passava, aumentavam as histórias de misteriosas luzes que vagavam por aquelas bandas, até choro de criança diziam ouvir.

Caro leitor, aquela tempestade parecia estar mesmo decidida a cair. Ventos, raios, o ronco do trovão cada vez mais perto, e o caixeiro-viajante ainda tentando achar a velha trilha. Ainda dava pra ver o céu carrancudo arqueado sobre a serra. O caixeiro então parou mais uma vez para nortear-se e aproveitou para acender o seu cachimbo e também uma lanterna de carbureto. Olhou para o relógio e percebeu que andava em círculo, pois pelos cálculos que fizera, já deveria ter chegado ao destino. Ficou preocupado, mas continuou cauteloso em meio às brenhas.

Nenhuma luz que denunciasse uma casinha, um ser vivente por ali. Precisava descansar, ele e o cavalo. Então uma luz apareceu, mas era estranha, era da cor de brasa, igual a que avivava o seu cachimbo e movimentava-se pra lá e pra cá. Ora tinha o formato de uma roda, ora se desfigurava completamente. O cavalo de susto se inquietou como se quisesse se soltar da charrete, mas foi prontamente dominado pelo homem que imediatamente apagou a lanterna e o cachimbo, se escondeu numa densa ramagem.

Com o clarão emanado pela coisa, ele reconheceu o lugar. Lá estava em total ruína a casa grande, a casa das meninas junto ao morro das pedras onde o mato crescia pouco. Onde outrora existia a porta principal da casa, entrava e saía aquele fogacho como se fosse uma criança malina. Aquilo lhe provocava calafrios, o seu coração pulsava forte e estava entre parar ou saltar do peito. Felizmente nenhuma coisa nem outra!

À sua frente, só há alguns metros do seu nariz, desenrolava-se um espetáculo surreal. Debaixo do toldo da noite sendo aquilo o que fosse, era ela ao mesmo tempo ribalta e ator naquele improvisado proscênio. De súbito ele viu no hallo flamejante algo que lembrava um rosto de criança. Ele conhecia bem a história, e ligando um fato ao outro gritou:

- Uallah! Por Deus! Piedade senhor. E puxou um rosário com um enorme crucifixo de cedro e passou a rezar todas as rezas que aprendera, e o que aprendera não era pouco.

Tibúrcio era o seu nome. Filho de alforriado. Carregava um misto de fé religiosa e superstições. Além das rezas e do crucifixo, municiava-se também com patuás, figas e uma pequena garrafa de água benta.

O ente tenebroso com muita fúria parecia digladiar com o próprio ar. Nos socalcos do morro das pedras a cada investida provocava fagulhas que se espalhavam pelos arbustos. O cavalo mesmo de costa para a cena, estava inquieto e o caixeiro tremia sem controle e rezava, rezava...

Mas a reza pareceu ofender a tal criatura a ponto dela se dirigir pra onde ele estava. Foi diabólico, o fogo uivava sobre o pobre homem e o pobre homem sob as ramas, rezava e rezava...

Num ato mecânico, ele encarou a coisa e aspergiu-lhe toda a água-benta que trazia. O até então solitário espectador passou também a protagonista do acontecimento e gritou:

- Vade! Siga em paz, São João batizou Cristo e cristo te batiza agora!!!

Um grito meio gemido se ouviu e a bola de fogo foi para o cimo do morro e de lá se precipitou numa queda vertiginosa até o chão, causando um estrondo como se fosse um trovão acompanhado de um enorme clarão. Dizem que o som foi ouvido por todo o vale. Touceiras de capim ardiam...

Um silêncio sepulcral veio acompanhado por um estranho tule de névoa que mais parecia uma enorme mortalha cobrindo mansamente toda a gleba.

A chuva veio. Veio fraca, mas o suficiente para apagar alguns resquícios de brasas que ainda vasquejavam aqui e acolá.

Tibúrcio, o caixeiro, esgotado que estava desmaiou sobre a boléia da sua charrete e assim permaneceu até o raiar do dia.

Desbotado de medo e cansado, ele despertou e percebeu que a trilha que procurava, estava somente há poucos passos donde passara a noite.

Chegou à cidade. O pobre estava em estado lastimável. Ele parecia ter sido acometido por uma profunda demência. Foi logo contando o que passara, para quem quisesse ou não ouvir. Gritava coisas que pareciam desconexas. E tanto pertubou a ordem que o delegado da cidade gentilmente, com alguns empurrões, convidou-o a se retirar. – É um louco disseram. ...

Antes, pediu um naco de fumo para o seu cachimbo e depois desapareceu célere em sua charrete em meio à bruma da manhã.

De qualquer forma a história se espalhou por toda a região. E em pouco tempo o mato tisnado foi perdendo lugar para o verde. A natureza, cumprindo a sua vocação, a tudo redime, e imprimindo a sua divindade incessante refez a mata com mãos hábeis de um artesão. Dali em diante o lugar voltou a paz. Nunca mais se ouviu qualquer coisa que fosse assombrosa por aquelas bandas.

Passado muito anos, aquele lugar foi alcançado pela urbanização. Uma moderna avenida corta ali e quem passa, vê no alto daquele morro derruído, um pequeno cruzeiro em sinal de graça, que hoje dá nome ao morro.

Um conto de José Alberto Lopes®

31/05/2010