É A GLÓRIA

Era uma senhora sisuda, de estatura corcunda, pele queimada de sol, óculos aro de tartaruga dando ao rosto mais rigidez. Os cabelos sempre do mesmo modelo, presos em coque, ralos fios dourados, decorados por uma presilha estilo borboleta. Nunca usava maquiagem, nunca usava sorriso nos lábios nem fixava os olhos num ponto devido a certos cacoetes adquiridos com o tempo. Passos firmes, olhar para baixo e bolsa a tiracolo feita de pequenos retalhos e costurada por ela mesma. Tinha sempre os mesmos hábitos, sempre as mesmas ações, embora uma vontade de mudança grande dentro daquele coração trancado a sete chaves, sete séculos de existência e exatidão nas ações da vida.

Dona Glória era a sétima filha do casal Felício Paixões e Rosaflô Dejesus, nascida às margens do Rio da Saudade no interior de Brasilianópole, lugarejo perdido na quina da esquina onde o vento só sopra no intermediário entre a vontade de e a certeza do talvez, lugar inventado no país da imaginação. Nascera em noite de lua cheia e era o sétimo dia de uma semana tumultuada do sétimo mês do ano de setenta e sete. A lua estava linda e belas estrelas pareciam sorrir com aquele ser de luz que saltava para a vida.

A casa era grande assim como grande se tornara aquele presente para uma família que tanto desejava ter filha mulher, era a glória e naquele momento nascia a Maria da Glória mais tarde chamada de Glorinha.

Crescia rodeada de aves, cheiro de estrume de vaca e de carinhos rudes e trabalhos que a levava a exaustão. A rotina da vida rural logo ficou registrada na sua história de vida. Desde cedo tinha de aprender o ofício de servir, de desenvolver os trabalhos destinados as mulheres: tangia as galinhas, moía o milho, fazia o pão de milho, a paçoca e a manteiga da terra. Era prendada e logo aprendeu o ofício dos bordados, das costuras e os ofícios dos santos tirados todos nos dias no alpendre da casa, tudo isso instruído pela madrinha de apresentação que morava a sete léguas do lugar onde viera a luz a Maria da Glória. Percebia algo estranho em si, dentro de si um mundo a parte daquele que presenciava, via e desenhava pelas histórias escutadas, contadas pela voz rasgante daquela que, embora sem grandes atrativos, dava-lhe atenção, embalava sonhos e amenizava dores de dias que nunca pareciam ser nublados.

A vida, ainda quando criança lhe foi muito dura. Perdera o pai, seu Felício Paixões, homem de poucas letras fazedor de gaiolas quando tinha sete anos de idade em emboscada de vingança por questões de terra. Tinha na memória o momento que passou cantando por sobre a casa o rasga mortalha e o alarme do tiro e o corpo do pai caído no chão do terreiro da casa, no espaço que estava desenhado o céu da academia, brincadeira que costumava brincar ao cair da tarde. Passava pouco tempo da hora do ângelus e naquele momento a mãe havia colocado todos para dentro de casa para lavar as mãos e aguardar o pai que não mais tardava e todos pudessem jantar. A mãe cantava um bendito quando levou a mão a boca para engolir o grito de dor.

No velório do pai, o irmão mais velho recebia dos tios a arma para vingar a morte do pai assim que amarelasse o sangue marcado na camisa. Tinha sete anos e vira sete vidas serem tiradas do seu convívio num período de sete semanas.

Aquilo se repetia em sua mente: Enquanto quarava a camisa estirada no quarador da casa os sete dias até amarelar, seus seis irmãos e a mãe se armavam para vingar a morte do pai como rezava a tradição e o costume do lugar e da família. Um por um caia por terra, cada um a sete palmos do chão. A última foi sua mãe, morreu em seus braços, olhando-a nos olhos e contemplando a lua naquela noite de sereno calmo.

Estavam as duas em casa tirando o terço pelo sétimo dia de morte do irmão mais velho que a Glorinha apenas sete meses, quando de repente as sete viúvas, dos sete mortos da outra família chegaram armadas de facas e arrancou a sofrida senhora diante do Relicário e amarrada na árvore frondosa de frente da casa, cada uma ia enfiando-lhe a faca sem fazer careta, sem pestanejar e dizendo o nome do defunto que estava sendo vingado. A árvore ficava numa encruzilhada e aos poucos o coração, o estômago, o fígado, o pulmão, a vagina, as nádegas, o peito, a boca, cada canto do corpo era marcado a faca, como se abate um porco, uma cabra, uma vaca. A mãe nada disse e Glorinha sentia que naquele momento a alma da velha senhora cantava benditos a Nossa Senhora das Encruzilhas.

Terminado o serviço as mulheres se perderam na escuridão da noite. Todas em luto, de lenços nos cabelos e guias de rosários nos pescoços, a fusão do sentimento religioso com o gosto da vingança e a lei sendo cumprida em nome de uma tradição

A menina presenciou cada movimento e deixou as lágrimas rolarem em silêncio, um silêncio de alma. Pela esperteza de criança conseguiu subir na árvore e soltar as mãos amarradas da mãe com toda a força que tinha. Deitou-a no chão frio da noite e com água e pano limpou o corpo sujo de sangue da mãe e vestiu-lhe roupa de festa e pintou o rosto e colheu flores e pegou lampiões e deitou a cabeça da mãe em seu colo e cantou canção de nina enquanto a mãe, em expressão de riso, dormia serenamente o sono dos justos. Naquela noite escutou passarinhos cantando e velou o corpo pro toda a madrugada.

Fora encontrada somente na manhã do dia seguinte. Chovia e a água da chuva molhava o corpo da mãe e ela ali calada velando o corpo daquela que lhe trouxe a vida, dera-lhe a primeira boneca feita de retalhos e ensinara-lhe a oração do anjo guardador. Fora encontrada por vaqueiros a procura de vacas fujonas e tudo foi acertado, a casa fechada e juntando os poucos pertences, foi morar com a madrinha numa outra casa, deixando para trás sua história, memórias e recordações.

A dureza da vida em troca de pão tinha seus momentos de gratidão. Aprendera as primeiras letras com a madrinha de jeito rude de ensinar. Era uma antiga mestra que ensinava em casa e nas casas. Ensinava cantando as antigas lições e desde a morte da mãe, a menina, resolveu se resguardar e nunca ninguém a viu sorrindo. Agora eram somente elas duas e mais ninguém. A madrinha era moça velha e tinha lá seus modos de agir, querer e ensinar a vida à menina Glória.

Aos treze anos fora matriculada oficialmente no grupo escolar. Já nesse momento, o lugarejo tinha sido elevado à categoria de município de Vila das Sete encruzilhadas da saudade. Ficava oras e oras deleitada na cama perdida em devaneios de deleite de leituras. Desde que começou a estudar descobriu a biblioteca, vivia com os livros e assim criou gosto para se formar professora aos vinte e oito anos de idade. Queria reproduzir não a dureza de se ensinar como os professores da vila, mas do jeito prazeroso que havia guardado na memória o jeito amável que a mãe lhe ensinava as obrigações da vida.

Nunca se casou, não tinha vontade de construir família, embora sempre aparecesse um ou outro pretendente se engraçando para seu lado no caminho da escola ou da igreja. Era casada com os livros, fazia de cada personagem o seu amante e sorria dentro de si com a possibilidade de se tornar uma das heroínas daqueles romances que traziam para sua vida um sentimento inexplicável. Aguçava-lhe os sentidos e a fazia entrar em êxtase demasiado e perspicaz.

No exercício do magistério fez suas alegrias e tristezas. Cada nova sala era uma satisfação. Ensinava com o coração, embora não se envolvesse tanto afetivamente com as crianças nem com os pais, mas todos a adorava até que certa feita, o que não se explica facilmente aconteceu.

No caminho que fazia todos os dias, no fim de tarde, de volta para casa, debaixo da oiticica, um vulto coberto, corpulento, espadaúdo, de mãos firmes a atracou pro trás, travando entre os dois uma briga que a fazia levar desvantagem e aquele corpo tosco, ao mesmo tempo másculo com cheiro de suor de macho que roçava o seu, causava em si uma mistura de prazer e dor e caídos no chão, a grosseria do caboclo fez o rosto da pobre Glória roçar no chão e um graveto de pau acerta-lhe em cheio o olho esquerdo. O sangue, a situação fez o ser se revelar. Era um antigo aluno que lhe nutria amor, muito amor e em pedidos de desculpa e perdão e vergonha saiu correndo sem direção. A professora levantou-se, ajeitou os cabelos, fechou alguns poucos botões da blusa que havia abertos, tirou um lenço da bolsa e nunca disse nada a ninguém. O facínora do ato conspurco amanheceu enforcado, no dia seguinte as margens do rio da Saudade. A professora chorou em silêncio e acompanhou de sua janela o cortejo do enterro

Passou quinze anos ensinando as primeiras letras no jardim, nas primeiras séries do primário e nas séries finais. Passaram por suas mãos várias autoridades do município e vários desocupados que desistiram de estudar ainda nas primeiras letras ensinadas. Passara a usar pesados óculos, uma lente escura devido à claridade no olho machucado e outra lente clara. Nesta época já apresentava um cacoete de mexer a sobrancelha para cima e para baixo sem parar.

Perdeu também a madrinha numa noite de chuva intensa. Nesta época já estava com quarenta e cinco anos de idade e resolveu se arriscar. Fez um lindo velório de despedida, comprou um belo mausoléu nas cores azul e branco para agradecer àquela que te ofertou casa, comida e carinho, arrumou todos os pertences e seguiu rumando para a capital, procurou abrigo descente, se encantou com as novidades, descobriu o cinema e as grandes bibliotecas de empréstimos de livros. Resolveu cursar faculdade e encontrar novas motivações para a vida.

No mesmo ano que concluía o curso, fora convidada a lecionar na faculdade, mas não aceitou. Resolveu voltar para seu interior e desenhá-lo com outros traços, pintá-lo com novas tintas e novos saberes. Encontrou com o velho grupo escolar reformado, mais salas, um corredor enorme que dava para um jardim de mangueiras e altas árvores centenárias. Foi acolhida com alegria por antigas e novas amigas. Matou a saudade dos tempos de outrora quando corria livremente debaixo daquelas árvores com sua lancheira róseo.

Aquela senhora, de cinqüenta anos de vida, acobertada pelo silêncio das lembranças que carregava no peito exercia o magistério com a mesma presteza que tinha quando a mãe lhe ensinava as primeiras orações. Era respeitada e criticada ao mesmo tempo.

Gostava de roupas escuras, era rude consigo e silenciosa. Só falava o necessário e nunca sorria. Gostava de contar história e fazer crochê. Raspar o tacho do doce feito pelas merendeiras era um desejo que não escondia e escutava as novelas de rádio aos sábados à tarde.

Era o dia sete de julho daquele ano quando vinha caminhando pelo largo corredor do grupo escolar, corredor comprido, sem fim. Vinha distraída e não percebia que diferente do dia que havia nascido, estava nublado e uma leve neblina pretendia cair. As rosas pareciam cheirar mais naquele dia e dentro do seu coração uma batida mais agitada, nervosa, tensa. Lembrara da morte do pai enquanto caminhava, lembrava da morte de cada irmão, lembrava da morte da mãe e lágrimas silenciosas caiam insistentemente de seus olhos.

Lá mais adiante via as vacas, o curral da casa velha, o velho oratório e a palmatória. O moinho que moía o milho quando criança para fazer no fogão a lenha o pão de milho, o pilão ao lado do tanque da cozinha e o reio de pimba de boi feito para tanger as galinhas. Olhava para as paredes do corredor e lá estava o paneleiro, ao lado da porta de uma das salas o tripé com o lava pé, a tolha e mais em cima o espelho onde os irmãos se olhavam para se barbear.

Nas narinas o cheiro do cigarro brejeiro fumado pelo pai e a velha lamparina de seu quarto. As bonecas de pano, todas feitas pelas mãos da santa mãe e em cima da penteadeira os álbuns de recordação. Nos armadores das paredes as redes, todas enroladas, prontas para serem armadas logo mais no cair da tarde.

Passou a ver as crianças das séries iniciais em filas para lavarem as mãos, as primeiras lições tomadas nas cartilhas em preto e branco, a colação de grau e a satisfação das mães pelo trabalho realizado. As séries seguintes e como havia contribuído para a vida de tanta gente que até naquele momento eram gratos a ela. Um surto de memória?

Passou a ler então todas as cartas de velhos alunos, todas guardadas num enfeitado baú de recordações. Encontrou o velho caderno diário que escrevia suas histórias, as histórias sonhadas que tanto desejava ter vivido. Cartas perfumadas, coloridas, cartas depoimentos de encher os olhos e seus olhos pareciam lagoas porque as lágrimas insistentes não paravam de cair.

Sentiu necessidade de tirar os óculos, arremessá-los longe, de soltar os cabelos e sorrir, naquele momento ser outra pessoa, o ser inteiro que residia nela há tempo. Não precisava dos óculos, sem eles enxergava melhor e nem a claridade, a grande claridade lhe impedia de ver.

Sorria por tudo e pela vida, sorria pelas imagens, pelo tempo da lembrança e pelos tempos de escola. Escancaradamente abria a boca em sorriso alto, sorriso rasgado a mostrar os dentes e o interior do seu corpo.

Era o dia sete de julho e cumpria um círculo de setenta primaveras. A glória chegava para Glória e naquele momento sete anjos com sete espadas ao redor de uma bela senhora. Sete cavalheiros montados em cavalos alados ao lado de um Rosaflô que se desabrochava e inundava todo o espaço com cheiro de alfazema.

Percebeu naquele instante que não sentia o peso do seu corpo, que não necessitava dos sapatos e resolveu olhar para trás. Virando o rosto, viu que pessoas aplaudiam e outras cantam e outras riam e outras choravam e outras conduziam um corpo parecido com o seu.

Naquele momento viu a si como se via refletida na água do rio da Saudade que passava ao lado da casa velha onde havia nascido. Tomava consciência que naquele momento seu ciclo de vida na terra era findado, enquanto em outra dimensão sua madrinha vinha de braços abertos, mais uma vez recebê-la e sorrindo como nunca antes em vida. Queria mais uma vez apresentá-la a sua família.

Glória a abraçou e saiu correndo por aí, sem direção sem saber o que na verdade estava procurando. Correu pela Encruzilhada até o rio da Saudade e banhou-se naquelas águas como nunca havia se banhado antes, como ato cristão e assim se vendo emergir como novo ser, pela glória de ser...