O Aparelho de Jantar
O aparelho de jantar
Maju Guerra
Quando menina, Ritinha era encantada com o aparelho de jantar inglês da avó Ilda. Coisa suntuosa, usado apenas nas grandes ocasiões: casamento, batizado, Natal, Páscoa. Ela perdeu a conta do tempo que ficou sentada no chão namorando os pratos, as travessas, a sopeira, a molheira, um mundo azul e branco trancado na cristaleira. A mãe dizia: sai daí, menina. Aonde já se viu alguém adorar prato? Ritinha mal ouvia, a imaginação corria solta...
Como dizia a tia Beatriz, aparelho completo do jeito que não se fazia mais, duas dúzias de todas as qualidades de prato, uma joia. Quando sobrava tempo, a avó lhe contava a história gravada nos desenhos azuis, história de príncipe e de princesa lá da China, lugar distante de se imaginar. O final não era dos mais felizes, mas poderia ter sido pior, Ritinha pensava. Os dois namorados fugiam e morriam. Mais tarde, uma feiticeira boa, cheia de compaixão, os transformava em águias, viveriam juntos para sempre no Paraíso dos Pássaros.
Quando cresceu, a avó lhe deu o aparelho de jantar com a seguinte condição: enquanto fosse viva, ele continuaria dentro da cristaleira. Depois, a neta poderia levá-lo para onde quisesse. Em estado de alegria, Ritinha aceitou o trato, a louça mágica azul e branca agora era sua. Nada mais justo, a família comentou.
Na véspera do Natal, todo o aparelho foi retirado do móvel, lavado e colocado em cima de uma mesa não muito nova. Um dos pés bastante bambo, ninguém notou. No meio da agitação da tarde, alguém sem querer esbarrou na mesa que despencou, e com ela toda a louça. Ritinha ficou parada, atônita, não conseguia acreditar na cena de horror bem na sua frente. Pedaços de porcelana brancos e azuis despedaçados, espalhados pelo chão da cozinha. Somente dois pratos de jantar se mantiveram incólumes. Seu choro durou três dias e três noites interruptas, por pouco não desidratou.
Quando a mocinha se acalmou de vez, a avó veio conversar. Abraçada com a neta, pediu-lhe para ver o lado bom da história. Aprendera muito com a perda do aparelho de jantar. Ele ficou trancado a maior parte do tempo, uma lástima. Tão pouco utilizado, serviu mais pra ser admirado por sua beleza. Do que adiantou tanto zelo? Em um breve instante, foi-se embora, acabou espatifado, misturado ao lixo. Total falta de senso, pena ter compreendido da pior forma. Mas vão-se os anéis e ficam-se os dedos, bom aprender enquanto havia tempo para corrigir os erros. As coisas foram feitas para serem usadas, para serem desfrutadas. Um dia se quebram, não há como evitar. Guardar o que se tem em armários não passava de uma imensa tolice...
O tempo seguiu seu curso. Quem quiser ver os dois pratos que restaram do aparelho de jantar, vá na casa da Ritinha. Eles enfeitam a parede da sala de visitas. Lembranças da finitude da existência.
Maria Julia Guerra.
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