A SAGA DE JORGE - PARTE III

Continuação...

Lá fora, ainda tremendo de raiva, Jorge procurou raciocinar. De fato, o documento estava plastificado. Na época, ele tinha feito isso para fazê-lo durar mais tempo. Jamais pensara que, em plastificando-o, tivesse, no momento, um dissabor desses.

Estava absorto em pensamentos, quando ouviu uma voz conhecida. Ao virar-se, deparou-se com um professor amigo seu, hoje lotado no sindicato da classe. “Para toda desgraça, uma coisa boa tinha que acontecer. Era o equilíbrio da vida”, vibrou ao pensar.

– Diga aí, Jorge. O que anda fazendo por aqui? – cumprimentou o amigo que ele já não via há bastante tempo.

– Rapaz, estou tentando tirar uma documentação para poder apresentar ao Ministério Público. Fui chamado para uma vaga e só tenho até amanhã para poder apresentar o restante da documentação e, com isso, o meu nome ser incluído no Diário Oficial antes do recesso.

E Jorge foi explicando ao colega o que estava acontecendo. Contou tudo, até como forma de desabafo.

O amigo o ouviu e, pegando no histórico, lhe deu uma ideia.

– Jorge, vá numa prestadora de serviços, tire uma xerox do histórico e, em seguida, autentique no cartório. Olha, tem um cartório que faz autenticações logo ali, na Avenida Salgado Filho, perto do Nordestão. Dá para ir a pé.

– É mesmo! – vibrou Jorge com a ideia do amigo. Porque ele não havia pensando nisso? Se tivesse pensado antes e sobre a ideia do amigo, teria evitado aquele aborrecimento matutino.

Bem, só faltava uma coisa para completar a satisfação de ver o amigo e ter uma parte de seu problema solucionado: que o amigo emprestasse o dinheiro que ele precisava.

– Melo, você, por acaso, poderia me emprestar R$ 50,00 (cinquenta reais)?

– Jorge, infelizmente, não vai ser possível. Estou passando por um período não muito bom com as finanças e sinto muito, mas não poderei emprestar essa quantia ao amigo.

– Tem nada não, Melo. Você já me ajudou bastante.

Em seguida, os dois se despediram. Cada um foi em busca do seu destino e, por mais um tempo, eles não voltariam a se encontrar, disso Jorge tinha certeza.

  Saindo dali, Jorge tratou de ir ao cartório, como sugerido pelo amigo, e ao atravessar a passarela – que atravessava a avenida famosa da cidade –, e ao descê-la, deu de cara com uma prestadora de serviços. Na porta um letreiro dizia que ali se tirava xerox. Não perdeu tempo. Solicitou ao rapaz que o atendeu, a cópia xerográfica da frente e verso do documento que levava, no caso, o seu histórico escolar.

Ao concluir o trabalho, o rapaz o orientou a pagar, no caixa, a quantia de R$ 0,50 (cinquenta centavos). Jorge não reclamou do preço abusivo. De fato, o preço estava alto para uma simples xerox, mas, o que seria dele, se, por acaso, ele tivesse que pegar um ônibus para tirar uma xerox noutro lugar? – Sairia mais caro, com certeza. Por isso, pagou e ainda agradeceu a prestação do serviço. Na saída, procurou se informar sobre o cartório que ficava por ali. O rapaz lhe indicou o caminho e ele se dirigiu para lá. Era perto. Ao dobrar a esquina e adentrar a outra rua, de longe ele viu o letreiro acima da porta que dizia que ali funcionava um cartório. Porém, ao se aproximar, viu, na porta fechada, um cartaz que dizia: Mudou-se para o Alecrim, na rua tal, número tal.

Mais uma vez, Jorge sentiu aquela sensação de desesperança tomar conta de si. Era muita provação para uma só pessoa! Parecia que os deuses estavam querendo sacaneá-lo. Se uma coisa boa acontecia, sempre vinha uma coisa em contrário para desanimá-lo.

De repente, um carro parou ao lado dele e a pessoa ao volante perguntou qual era o nome da rua que estava estampado no cartaz. Jorge disse. O motorista agradeceu e arrancou. “Droga, perdi a oportunidade de ter pedido uma carona até o Alecrim, pois, com toda certeza, aquele carro ia para lá!” – esbravejou Jorge.

Parado, ali, no meio fio da calçada, ele botou a mão no bolso e contou o dinheiro que restava. R$ 3,50 (três reais e cinquenta centavos). Precisava, urgentemente, de dinheiro. Não podia ir até o Alecrim só com aquele dinheiro no bolso. Ir, podia ir, o problema era voltar. Por isso, tomou uma decisão: ia voltar para a Casa do Professor. Mesmo porque, já era quase meio-dia. Assim, tomou o primeiro ônibus que passou e voltou para o local onde estava hospedado. Desta vez, ele ficou atento. Quando o ônibus passou pela rua onde atravessava a Avenida Afonso Pena, ele pediu para que ele parasse. Assim que chegou a Casa, entrou, tomou um banho e olhou quantos créditos havia no celular. Tinha poucos créditos. Porém, o suficiente para uma ligação interurbana.

– Alô, Rafael? Sou eu, Jorge. Tudo bem? Sabe o que é, Rafael, eu estou aqui em Natal e, infelizmente, houve um imprevisto e eu estou sem dinheiro. Daria para você me emprestar R$ 50,00 (cinquenta reais) até eu voltar? Depois a gente acerta.

– Certo, Jorge, falou Rafael do outro lado da linha. Eu estou saindo agora do trabalho e daqui a pouco passo na agência bancária e faço a transferência para a sua conta. Passe o número dela.
Jorge deu-lhe o número e agradeceu, antecipadamente, o favor. Na verdade, ele nem precisava pagar, pois dava aulas particulares aos filhos de Rafael e, pelos seus cálculos, o dinheiro que pedira emprestado, as suas aulas já cobriam. Entretanto, não podia deixar de agradecer o ato em si. Mesmo ele sendo um credor, o favor que Rafael ia fazer-lhe era pessoal, não tinha relação nenhuma com aulas ou dívidas.

Olhou para o bolso. R$ 1,50 (hum real e cinquenta centavos). Não podia sair nem para comprar nada. Talvez encontrasse, na padaria, algo que pudesse matar a fome. Resolveu que iria comprar uns pãezinhos. Pelo menos, uns três. Rapidamente, levantou-se e foi à padaria. Não era longe. Cerca de trezentos metros da Casa do Professor. Foi e comprou os ditos pãezinhos. Na volta, o cheiro da massa estava deixando-o embriagado de desejos de comê-los, ali mesmo, na rua. Comportou-se, apesar do seu estômago, a toda hora, reclamar do vazio que estava sentindo.
Na chegada, passou direto para a cozinha. Avistou, em cima de uma mesa, uma garrafa. Com sorte, ela ainda devia conter alguma coisa dentro. Podia ser café ou chá, ou até mesmo leite. O que tivesse, se tivesse, era saldo. Quase em estado de excitação ele pegou na garrafa e percebeu que estava pesada. Ali dentro havia líquido suficiente para encher um copo descartável. Pegou, então, do gelágua, um copo. Abriu a tampa da garrafa e pela abertura da mesma desceu um líquido preto e cheiroso, que o deixou com água na boca, mais ainda do que já estava. Era café. E bem quentinho. O refeitório, apesar de não servir almoços – só o café da manhã – preservava, sempre no horário do almoço, uma garrafa quentinha de café. Jorge encheu o copo até perto da borda. E, sem cerimônias, passou a devorar aqueles pães tenros e quentes, como se fossem um manjar dos deuses. E eram. Juntos – café e pães – abasteceram seu corpo e lhe devolveram a vontade de lutar.

Quando terminou a sua “refeição”, Jorge foi ao seu quarto, pegou escova e pasta e foi escovar os seus dentes. Estava dando, justamente, o tempo necessário para ir a um caixa eletrônico e olhar seu saldo para ver se Rafael já havia transferido o dinheiro que ele lhe pedira emprestado. Agora, tudo dependia daquele dinheiro. Sem o depósito em sua conta, nada feito. Pensou positivo. O dinheiro já estava lá, autenticou, pois Rafael era um homem de palavra e em nenhum momento anterior havia lhe faltado com a palavra. Sempre que ele chegara “junto”, ele o atendera.  

Quando acabou, lavou o rosto. Precisava sair e ir ao caixa. Por sorte, na mesma avenida tinha uma agência do banco onde ele tinha conta. Olhou no relógio: 13h00min. Saiu da Casa e foi caminhando a passo lento. Não tinha pressa, mesmo porque, não queria ir muito rápido, pois o sol estava de rachar. Só ia fazê-lo suar desnecessariamente. E ele não estava bem preparado de roupa para ir trocando duas por dia. Por isso, caminhar devagar, apesar da pressa que tinha, era uma estratégia, até certo ponto, positiva.

Logo chegou à agência eletrônica do banco. Ao entrar, o ambiente era extremamente agradável. O clima devia estar por volta dos 20º. Aproveitou para se refrescar antes de se dirigir a um caixa. Queria deixar que saísse o restante do suor do seu corpo. Depois de uns cinco minutos parado – sendo observado pelo guarda de plantão –, ele se dirigiu a um caixa, colocou seu cartão, digitou a senha e olhou o saldo. Para sua surpresa, o saldo apresentava R$ 150,00 (cento e cinquenta reais). Rafael tinha feito uma bela surpresa. Mais uma vez Jorge se emocionou. Isso significava que a humanidade tinha jeito mesmo. Ainda havia homens generosos, cientes das dificuldades que outras pessoas passavam quando estavam fora dos seus domínios, de seus habitats. Agradeceu ao amigo a gentileza. E prometeu que, no primeiro salário que recebesse do Ministério, lhe compraria um presente.

Agora, sim, meditou Jorge. Estou com dinheiro e posso pegar o coletivo que quiser e, se for o caso, até um táxi, se necessário, para poder resolver os meus assuntos. Como a vida dava voltas! – pensou. De repente, ele saía de uma situação adversa, quase deprimente – de fome e de tristeza – e passava a de euforia pela conquista de saber que podia resolver seus problemas sem mais dificuldades financeiras. Alecrim, lá vou eu! – completou.

O ônibus parou na rua citada. Não querendo incomodar, desceu logo no seu início e foi andando. Ia olhando as lojas populares, seus vendedores que berravam nas portas dos estabelecimentos, tentando atrair os fregueses que passavam ao largo. Por diversas vezes, foi interceptado, quase levado à força para dentro das lojas, por moças vendedoras, que queriam lhe oferecer alguma coisa. A todas, ele se recusava, educadamente, e se desvencilhava, apelando para a sensatez de cada uma delas. Já estava se cansando de tanto andar, quando, finalmente, chegou ao cartório. Para sua surpresa, estava fechado. O horário de expediente do mesmo era até as 13h00min. Dera a viagem perdida. Mais uma vez aquela sensação de desânimo voltou a bater em seu corpo. Era sempre assim: uma coisa boa, outra ruim. Olhou para os lados. E agora? – pensou.

Enquanto resolvia o que fazer, ele, em pé, na calçada em frente ao cartório, ouviu quando a porta do mesmo foi levantada pelo lado de dentro. Ele olhou assustado e viu saindo de lá, um funcionário, enquanto alguns permaneciam lá dentro. Jorge não contou conversa. Sem parecer incômodo, ele se dirigiu ao funcionário e pediu-lhe um minuto de sua atenção. A contragosto, o jovem assentiu e ele, pausadamente, contou-se o seu problema. O rapaz o olhava, desconfiado, mas ouvia com atenção. Quando Jorge terminou, ele pediu que ele esperasse um pouco e voltou a levantar um pouco a porta corrediça e entrou de volta. Jorge, pelo lado de fora, rezou para que as pessoas lá dentro concordassem com o pedido dele. A demora foi pouca. A porta foi levantada, de novo, e o jovem o chamou para dentro.

– O senhor tem muita sorte, disse. Nós, quando terminamos o expediente, ficamos em reunião. Por isso, ainda estamos todos aqui. Dê-me o documento para eu autenticá-lo, sua RG e o original do documento, por favor.

Jorge entregou ao jovem funcionário do cartório, xerox e original, mais a sua RG. Em menos de cinco minutos, a autenticação estava feita e assinada pelo tabelião.

– Pronto, senhor. Aqui está o seu documento. Custa apenas R$ 5,00 (cinco reais).

Jorge retirou a quantia e a entregou ao funcionário e agradeceu, em seguida, a gentileza do atendimento.

Ao sair dali, Jorge, mais uma vez, lembrou-se que a humanidade tinha jeito.

De volta à parada de ônibus, Jorge precisava pegar um ônibus que passasse no Centro Administrativo. Perguntou a um senhor que esperava, embaixo de uma marquise a vinda do seu ônibus, e o mesmo disse o número do coletivo que ele deveria pegar. Jorge agradeceu e ficou de olho na numeração indicada por aquele homem. Não demorou e o número dito apareceu na parte de cima, do lado direito do vidro da frente do ônibus. Ele entrou no mesmo. Por sorte, uma cadeira logo na frente. Assim, sentado na frente, ele podia ver para onde ia e podia ver o local aonde ia descer, sem precisar incomodar ao motorista.

O trajeto foi marcado pelo congestionamento do horário. As ruas e avenidas estavam lotadas de carros, ônibus e caminhões. Era a hora do segundo expediente e parecia que todos tinham saído de suas casas ao mesmo tempo. A marcha era penosa. O ônibus, a todo instante, parava. O mar de carros se fazia ver por todos os lados.

Jorge pensou: como a Terra era rica em recursos naturais! Pois, só ali, naquela paisagem que ele via, mais de duzentos carros queimavam petróleo. E, mesmo assim, a mãe natureza alimentava a todos. Era claro e evidente que ela cobraria mais tarde. Isso era lógico. Não podia passar impune, a ela, o que os homens faziam contra ela. Só ali, naquele pedaço, a poluição se fazia notar de uma forma acentuada. Os gases dos escapamentos dos veículos invadiam o ar e deixavam a atmosfera pesada. E isso era preocupante. Em todo o mundo, os efeitos desses gases, aliados aos de outros, estavam deixando o planeta mais quente. As consequências disso tudo eram alarmantes, principalmente, para a comunidade científica. E nem precisava ser um doutor no assunto para perceber as mudanças climáticas nos cinco Continentes.

E ainda tinha mais: o degelo dos polos era algo preocupante. Alguns estudos apontavam para um aumento no nível dos mares e, consequentemente, para uma invasão das águas, inundando as principais cidades do mundo, inclusive, a que ele estava no momento. Triste futuro se deixará para os nossos filhos, refletiu.

Depois de várias freadas bruscas, de intermináveis congestionamentos, onde ficar parado significava a buzina de carros impacientes querendo sair daquela situação, o ônibus chegou à parada onde, ele, Jorge, ia descer. Ia não. Onde ele desceu.

De volta ao Centro Administrativo, Jorge tratou de chegar à dita rampa dos pecados. Sim, ele já havia batizado a longa subida como sendo o caminho onde se pagava um pouco dos pecados cometidos no dia-a-dia. Cumprida a etapa de subi-la, Jorge acabou chegando à sala da antipática senhora que o atendera pela parte da manhã.
Quando bateu na porta da mesma e entrou, o quadro não mudara. A dita cuja estava sentada, o jornal aberto a sua frente e, mesmo ouvindo o toque dos nós dos dedos na madeira da porta, mesmo assim, ela não levantou os olhos para olhar quem estava entrando. Jorge, já conhecendo a educação da servidora, nem se deu ao trabalho de ignorar tal fato. Apenas tentou ser o mais gentil e educado possível, para ver se ela correspondia e acabava por entender que ela estava ali para poder prestar serviço de atendimento a quem procurasse a sua sala. Além do mais, ela não era a pessoa a quem as pessoas procuravam. Ela estava ali somente para encaminhá-las. Por isso, e mesmo por ser apenas esse o seu serviço, Jorge não entendia o porquê de ela proceder daquela forma.

– Boa tarde, senhora. Por gentileza, eu estive aqui pela manhã, para autenticar um histórico e a senhora me disse que a pessoa encarregada disso só chegava, agora, à tarde. A senhora pode me dizer se ela já chegou?

Sem nem ao menos responder ao “boa tarde”, a funcionária, demonstrando uma impaciência maior do que o que ela havia demonstrado na parte da manhã, tirou os óculos, levantou a cabeça para olhar aquele intruso que atrapalhava novamente a sua leitura e, sem ao menos disfarçar a sua ironia, disse:

– O senhor já foi a Mossoró? Se foi, por que não carimbou por lá o seu histórico?

Jorge, desta vez ia responder à altura a ignorância nas palavras daquela pessoa tão mal-educada. Toda paciência tinha limites. A dele chegara aos cem por cento.

– Minha senhora, eu gostaria de lhe dizer...

– Por favor, senhor, pode entrar. O que o senhor deseja mesmo?

A voz vinha do compartimento ao lado. Jorge olhou para onde tinha vindo o som e estancou suas palavras. Deixou-as presas na garganta. Junto com ela, a cor vermelha do seu rosto. Era impossível ficar impassível diante de tanta falta de respeito. Onde já se viu uma pessoa, que estava ali para atender a quem a procurasse, tratar tão mal aos seus semelhantes?!

Respirando fundo, Jorge se dirigiu para a porta ao lado. Estava entreaberta e quando ele se aproximou, veio ao seu encontro, a dona da voz. Era uma mulher muito alta para os padrões nordestinos e, apesar da idade madura, era muito bem feita de corpo. Vestia-se com simplicidade, porém com bom gosto. Usava uma calça comprida, na cor bege, uma blusa preta e um lenço amarrado ao pescoço, na cor da calça. Os cabelos estavam presos e deixavam, à vista, um rosto de traços perfeitos. Os olhos eram azul-claros e o nariz era afilado e arrebitado. Discretamente, Jorge abaixou a vista e olhou para os seus pés. Ela calçava um scarpin preto e, no tornozelo esquerdo, usava uma corrente de ouro. De relance, mas sem ter certeza, ele ainda viu uma pequena tatuagem na parte de dentro do tornozelo direito.

– Boa tarde, senhora. Eu estou precisando do carimbo da secretaria para o meu histórico escolar. Seria possível a senhora carimbá-lo?

– Claro. Como é o seu nome? – perguntou, gentilmente, a elegante senhora.

– Jorge. Meu nome é Jorge Lopes.

– Pois não, seu Jorge. Mas, por que o senhor não o carimbou na sua própria escola? Posso saber?

– Sim, pode, completou Jorge.

E Jorge contou-lhe toda a sua saga, desde a saída de sua cidade, até aquele momento. Só evitou falar, de mal, da servidora ao lado. Não era de sua índole falar mal dos outros. Se bem que, se tivesse dito o que estava lhe incomodando, talvez o entalo na garganta e a vermelhidão do rosto fossem embora.

– Mas seu Jorge! É um dever nosso atendê-lo. O senhor, de forma alguma, pode perder esse emprego. Se depender de mim, do departamento, o senhor já conseguiu a sua vaga. Aqui está o seu histórico já carimbado. E se o senhor precisar que o original seja carimbado, eu carimbo também. O que importa no momento é que o senhor não seja penalizado.

Obrigado, senhora, disse Jorge ao receber das mãos da gentil servidora, o seu histórico já carimbado. Apesar de ser a cópia, o original dava-lhe crédito.

Ao se despedir daquela senhora, Jorge perguntou-lhe onde ficava a Junta Médica, pois ele ainda precisava passar por ela.

– Seu Jorge, pode perguntar a minha secretária. Ela lhe informará. Eu, sinceramente, não sei onde fica. Até que eu sabia, porém mudou. Mas ela saberá lhe dizer.

Jorge agradeceu mais uma vez e saiu, fechando a porta atrás de si. De volta à sala da intragável secretária, ele, sem opção, perguntou-lhe onde ficava a Junta Médica.

– Na Cidade da Esperança, disse ela, secamente. Em seguida, retirou de uma gaveta um cartão e entregou a ele. Por sorte, era a mesma rua que ia dar na rodoviária.

Mesmo a contragosto, agradeceu e saiu dali o mais rápido possível. Não tinha tempo a perder. Precisava passar pela Junta Médica, voltar, pegar a chapa do tórax, ir para a Casa do Professor, dormir, acordar cedo e, se tudo corresse como ele estava planejando, ao meio-dia, sem mais nem menos, ele estaria frente a frente com César, munido de todo o restante da documentação exigida.

Já dentro de outro ônibus, depois de andar os cem metros que separavam o Centro Administrativo da parada obrigatória dos coletivos natalenses, ele ia contabilizando os trabalhos feitos até o momento. Contudo, para seu desespero, não soube mais dizer quantos. Talvez fossem dez, talvez onze. Não importava. O que de certo importava era que todos os que ele se propusera a cumprir, estavam cumpridos. Mas, mesmo assim, ele, com calma, ia contabilizá-los, um por um.

Na altura do número que estava no cartão dado a ele, pela servidora, ele tocou a campainha do ônibus, fazendo-o parar na parada seguinte. Ao descer, ele teve que voltar um pouco. Não importava. Caminhar fazia bem e, mesmo porque, só faltava aquele compromisso. Cumprindo-o, cumpriria suas tarefas. Por isso, caminhou, despreocupadamente, ao encontro da Junta Médica do Estado.

Quando chegou lá, abriu a porta de vidro e entrou. Lá dentro, por trás do balcão, um policial.

– Boa tarde, policial. Eu estou com a documentação para passar pela Junta. O senhor pode me encaminhar?

– Boa tarde, senhor. Sim, posso. Mas, o senhor pode me dizer se é Educação ou Saúde?

– Educação, respondeu Jorge.

– Sinto muito, senhor. Aqui funciona somente a Junta Médica da Saúde. A Junta Médica da Educação funciona lá no Centro Administrativo, ao lado do prédio da própria Secretaria de Educação. E tem mais uma coisa: assim como aqui, o expediente lá é até as 13h00min.

Jorge só não teve, naquele momento, um infarto, porque se enfartasse, perderia o emprego. Mas a raiva foi enorme. Como podia uma pessoa ser tão má. Fez com que ele andasse à toa, mandando-o para um local distante, mesmo sabendo que o local correto era ao seu lado.

Controlou-se. Não adiantava envenenar-se. O veneno que carregava só faria mal a ele mesmo. Não faria mal a mais ninguém, portanto, a melhor maneira era respirar fundo, recobrar a lucidez, controlar a respiração e os nervos, esquecer a rabugenta senhora e ir direto para o Instituto de Radiologia.

Outro ônibus. Outro destino. Na rua perto de onde estava hospedado, a descida do ônibus. Mais uns quatrocentos metros, o Instituto. Assim que entrou, a jovial senhora veio ao seu encontro. Estava sorridente e lhe disse que já estava com o resultado do seu exame em mãos. Em seguida, entregou-lhe um envelope grande e de cor amarela, grampeado nos dois lados de sua abertura, e que trazia dentro, algo parecido com plástico. A chapa, com certeza, pensou Jorge.

Depois de pagar os R$ 40,00 (quarenta reais), agradecer o favor que ela lhe fizera, Jorge saiu dali um pouco mais aliviado. A raiva já havia passado e ele pode refletir melhor a sua situação. Talvez, se fosse preciso voltar, naquele momento para o Centro Administrativo – quando recebeu a notícia do policial que ali só funcionava a Junta da Saúde – a raiva não tivesse passado, e ele, certamente, teria tomado satisfação com a ineficiente servidora. Ineficiente só, não; mau caráter também – adiantou seu raciocínio, Jorge. E isso poderia ter lhe trazido consequências diversas. Foi melhor assim, finalizou o raciocínio.

Alegre e sorridente, ele voltou para a Casa do Professor. Enquanto caminhava, foi fazendo as contas dos quilômetros que já havia rodado – tanto a pé, quanto de carro e de ônibus. Pelos seus cálculos, uns 360 quilômetros de carro e de ônibus. A pé, uns dez quilômetros. Assim, fazendo esses cálculos meio loucos, que não interessavam a mais ninguém, além dele, ele chegou aonde era hóspede. Foi direto para o seu quarto. Ao entrar, notou que ainda continuava sozinho. Sem tirar a roupa, deitou-se. Precisava descansar.

Não demorou muito, ele caiu num sono profundo.

Acordou já noite. Sentou-se na beira da cama, após ter se levantado, e notou uma leve dorzinha de cabeça. Em seguida, ouviu o seu estômago reclamar da falta de alimento. Só então lembrou-se que não tinha almoçado adequadamente. Precisava, urgentemente, se alimentar. Mesmo porque o dia seguinte era o dia “D” para as suas pretensões. Pelos seus cálculos, faltava apenas passar na Junta Médica. Portanto, tinha que se preparar, dormir cedo, se alimentar bem para, no dia seguinte, estar disposto e com aspecto saudável. “Tem umas coisas que eu fico pensando que parece coisa de louco!” – ajuizou Jorge enquanto pegava sua toalha e o seu kit de higiene pessoal e se dirigia para o banheiro.

Na volta, depois do banho refrescante e renovador, Jorge acabou de se aprontar e saiu à procura de um restaurante em que ele pudesse comer algo mais substancioso – e que não fosse apenas um caldo. Precisava, mesmo, era de um bom bife ou de um contrafilé com fritas e arroz e um bom copo de suco de graviola. Algo que pesasse no estômago e lhe desse a sensação de que estava completo em todos os sentidos.

Sem problemas, encontrou o que queria. E pertinho de onde estava. Era um restaurante italiano que ficava no mesmo alinhamento da Casa do Professor. Gostou do ambiente. Resolveu entrar. Ao sentar-se, olhou para os lados e viu meia dúzia de casais sentados às mesas, comendo. Um bom sinal. Restaurante onde sempre tem pessoas comendo é sinal de que o tempero da cozinha agrada a quem frequenta.

O garçom veio ao seu encontro e, educadamente, deu-lhe boa noite, colocando ao seu alcance, o cardápio. Jorge notou que no restaurante só serviam a la carte. Mais um ponto positivo, pensou. No seu entender, restaurante que servia self service só deveria funcionar no horário entre o matutino e o vespertino, pois nesse horário, devido ao corre-corre do expediente, as pessoas poderiam comer alguma coisa já preparada. Agora, com relação ao jantar – que é algo mais tranquilo –, restaurante que se preza não poderia atender com comida pronta.

O jantar – Jorge continuou a pensar – é para ser apreciado com um pouco mais de requinte. O cidadão que vai a um restaurante, depois do término do expediente, já não tem tanta pressa, já não precisa correr tanto. Normalmente, ao ir a um restaurante, no período noturno, a pessoa e/ou os casais já devem ter passado em suas casas, portanto, já saem sem pressa, determinados a terem uma noite agradável, a começar pelo ambiente de degustação – se for o caso –, ou mesmo, para serem servidos em seus pratos principais.

O atencioso garçom o tirou, momentaneamente, dos seus pensamentos, perguntando-lhe se ele desejava beber alguma coisa. Jorge já ia dizer que ia pedir algo para tomar somente quando escolhesse a comida e ela chegasse, mas mudou de ideia. O ambiente era extremamente agradável, a brisa da noite dava um ar de Veneza italiana e os seus problemas estavam quase chegando ao fim. Por que não se dar ao prazer de tomar um copo de vinho? Decidido, chamou o garçom, que estava um pouco afastado, esperando a sua resposta, e pediu-lhe um vinho da casa. Não era muito de beber. Aliás, beber, para ele, era algo excepcional. Bebia, ocasionalmente, quando comemorava um acontecimento, o nascimento de um filho ou era convidado para ser padrinho de uma criança e, depois do batismo, quando havia a comemoração, ou seja, os humanos sempre unem o sagrado com o profano. Se bem que, por questões evidentes, essas duas coisas sempre vinham em separado.

O rapaz lhe trouxe o vinho. A taça que lhe foi servida era muito bonita. Alongada, dava a impressão de que o copo jamais seria esvaziado até o seu final. Uma estratégia do fabricante. O cliente, com certeza, ao tomar algo dentro daquela taça, devia sorver com tanta vontade, achando que ela estaria sempre cheia que, talvez, em dois goles maiúsculos, ela já estaria completamente vazia.

Para ele, no entanto, aquela estratégia não iria funcionar. Talvez até funcionasse, ao contrário. O seu espírito esportivo e de bebedeira não tinha vingado, mesmo em seus tempos mais áureos, aqueles em que as festas e as discotecas se faziam presentes, e as “garotas” gostavam de rapazes que bebiam e fumavam. Ele não tinha se dado a esse “luxo” da mocidade. Era comedido. Mas, em contrapartida, o seu paladar era apuradíssimo. Gostava de ter atração pelo que era apetitivo, aquilo que lhe apetecia o olfato, pois esse sentido lhe trazia prazer. Era como um “bon vivant” na arte do paladar.

Jorge tomou o primeiro gole. Fez como os grandes apreciadores: pegou a taça, fez o líquido circular, trouxe-a para perto de suas narinas, cheirou-a suavemente. A sensação que isso lhe causou não podia ser dita em palavras. Era como se o prazer fosse adentrando o seu corpo, a sua corrente sanguínea, preenchendo-o de lascivos néctares. Depois, vagarosamente, colocou a taça entre seus lábios e deixou que o líquido enchesse a sua boca pela metade. Em seguida, fez com que o vinho circulasse por toda a sua cavidade bucal e fosse descendo, aos poucos, pela sua garganta, num ato de extremo controle e de sensível e rara degustação.

O efeito, no entanto, se fez notar, imediatamente. Como não era acostumado ao álcool, Jorge foi tomado pelo fogo em seu corpo, principalmente, o estômago, que logo reagiu aos estímulos provocados pela bebida. Consciente, Jorge chamou o garçom e pediu, para beliscar, pedaços de queijo. Forrar a parte mais vazia para que o álcool não subisse rapidamente para a cabeça, foi a forma de ele amenizar o efeito do vinho, usufruir do seu sabor e, ainda por cima, ter tempo consigo mesmo para poder refletir e apreciar a paisagem a sua volta, antes de pedir o prato escolhido.

O queijo foi servido numa tábua de madeira. O garçom que o trouxe, disse-lhe que era um queijo do tipo médio, marca Camembert, que caía bem com o tipo de vinho que ele estava tomando: um vinho branco.

E Jorge ficou ali, naquele recorte de relevo urbano, pintando suas recordações entre suaves goles de néctar dos deuses e beliscando um alimento fabricado antes mesmo da Pré-História, há cerca de 8.000 a.C., pelos povos túrquicos nômades da Ásia Central. Jorge lembrou-se que essa origem era questionada. No entanto, para ele, independente de sua origem, quem o fabricou primeiro deu origem a um excelente tipo de alimento.

Quando o vinho e o queijo chegaram ao seu final, Jorge já tinha em mente o prato que pediria. A euforia provocada pelo vinho, a sensação de leveza trazida, também, pela realização dos trabalhos desenvolvidos com sucesso, tudo isso lhe fez pedir uma bela de uma macarronada acompanhada de um belo filé ao molho madeira. Jorge, sem querer, misturava a culinária de dois países: a portuguesa e a italiana. Uma bela mistura.

Quando a comida chegou, Jorge se deliciou com o aroma que invadiu o ambiente. A comida feita na hora do pedido tem outro sabor, deduziu. O prato estava deliciosamente convidativo. A sua boca se encheu de água e engolir a saliva foi o remédio encontrado para não ficar babando de tanto prazer. A macarronada, servida em uma travessa de inox, veio acompanhada de queijo ralado, manjericão, coentro e orégano, além, claro, do molho de tomate tradicional. Veio também, em um prato da casa, ladeado pelo molho que lhe dava uma cor escura, e de onde saíam aromas agradáveis, a carne animal pedida. Estava divinamente bem preparada.

O garçom acabou de aprontar a mesa, colocando os complementos para um bom acompanhamento – azeite, vinagre, sal, molho – e, sem que Jorge desse por conta, encheu a sua taça de vinho. Jorge, que estava “comendo” com os olhos, a sua mesa, ao notar o copo cheio de vinho, olhou para o garçom que lhe disse que o segundo vinho era por conta da casa. Em seguida, desejou-lhe um bom apetite, perguntou se ele desejava mais alguma coisa e, como não obteve a resposta “sim”, retirou-se para atender a outras mesas.

Foi um banquete merecido. Jorge, depois de tantas provações, estava se dando, como prêmio, um belo de um jantar. Instintivamente, levantou a taça e brindou aos seus – esposa e filhos. Depois, agradeceu a Deus pelo dom da vida e pela oportunidade que Ele estava lhe dando na vida, contemplando-o com um emprego melhor, mais estável e melhor remunerado. Agradeceu aos seus amigos também. Sem eles, a luta se tornaria mais dura, mais pesada. Sem a força de mãos entrelaçadas, as conquistas se davam em menores proporções e nem todos venceriam as batalhas. Por fim, agradeceu aos seus pais por tê-lo feito homem de verdade, com crença, valores e moral. “Agora – sentenciou –, só falta comer”.

Jorge saiu do restaurante completamente saciado. Não só o corpo, mas a alma. Passara por breves momentos de puro êxtase pessoal. Fazia tempo que não se dava a esse luxo quase que obrigatório a todo ser humano. Pagou satisfeito o valor que lhe foi cobrado. Nem foi modesto, nem tampouco exorbitante. Foi dentro daquilo que valia um bom jantar a la carte.

De volta à Casa do Professor, primeiro sentou-se um instante na recepção para assistir um pouco de televisão. Porém, sua concentração estava dispersa. Por mais que tentasse, a sensação de completude e bem-estar se misturava à sonolência provocada pelos dois copos de vinho tomados. Era uma sensação de bel-prazer.

Resolveu, então, ir para o seu quarto. Lá, deitar significaria dormir de imediato. Não importava. O corpo estava cansado, apesar de satisfeito e, por isso mesmo, a cama lhe faria muito bem.

Ao se levantar, o celular tocou. No visor, o número de César. Jorge sentiu, imediatamente, aquele calafrio característico de “lá vem bomba!” Sacudiu, no entanto, a cabeça, para espantar os maus pensamentos. Não era possível que, toda vez que ele lhe ligava, tinha que ser devido a uma notícia ruim a ser dada. Precisava, inclusive, deixar de ser tão pessimista neste ponto. Não queria fazer parte das estatísticas que dizem que o homem, por si só, já é negativo e que pensa negativo, mesmo antes que as coisas aconteçam. Ele sabia bem disso, tinha exemplos claros disso. Bastava somente dizer que, ao abrir os olhos, pela manhã, o homem já se pergunta se o dia será bom ou não. Assim, ele configura um ato negativo mesmo antes de se levantar. A Bíblia também traz isso, mostrando que o homem é um ser negativo, voltado para o mal de suas ações. Talvez fosse por isso, pensou Jorge, que uma boa parcela dos seres não tenha evoluído e conseguido superar seus medos e seus instintos perversos com relação aos outros.

– Jorge, boa noite. Tudo bem? Ainda estava acordado? Desculpe te ligar a essas horas.

– Boa noite, César. Estou bem, sim. Não, não estava dormindo. E não precisa se desculpar, porque sei que, se você ligou, é porque algo importante é para ser dito. Correto?

Jorge perguntou já querendo antecipar os acontecimentos que, por ventura tivesse. Não sabia ele que essas coisas, apesar de serem evidentes, nem sempre se configuram. Contudo, no caso dele, claro que algo estava para ser dito e, pelas últimas experiências, era algo que deveria estar faltando ao complemento de seus documentos.

– Sabe o que é, Jorge, lembrei-me de que você não me apresentou o exame de deficiência física, ou seja, acho que você não passou pela Junta Médica de Mossoró para fazer o referido exame. Fez?

– Não, César. Não fiz. Aliás, não fiz porque na documentação não assinalava isso. Apenas assinalava a Junta Médica de uma forma geral, sem especificações.

– Pois, infelizmente, se faz necessário. Sugiro que você, amanhã logo cedo, procure um médico, através de uma consulta, e faça com que ele o examine, dando-lhe um atestado que comprove a sua incapacidade. Acredito que ele deva ter dois colegas que atestem isso. Caso contrário, a documentação fica incompleta.

– César, obrigado pelas informações. Vou ver o que posso fazer. Mais alguma coisa?

– Não, Jorge. Era só isso. Tenha uma boa noite.

– Boa noite, César.

Quando desligou o celular, Jorge deixou-se cair no sofá, novamente. Como era inocente! É claro que sempre atrás de uma boa notícia vem uma notícia não boa. De qualquer forma, ainda tinha tempo para reverter aquela situação. Como dissera César, um médico resolveria a questão. Dinheiro tinha para pagar uma consulta. Só precisava de um clínico geral ou, até mesmo, um ortopedista. Jorge ainda ficou longos minutos tentando encontrar uma solução para o dilema apresentado, mas a sua cabeça fervilhava de opções, porém, nenhuma delas era viável para a situação.

Resolveu ir deitar-se. Quem sabe – pensou – deitado, relaxado, a cabeça funcionasse melhor e encontrasse, pois, a alternativa viável para o problema.

Entretanto, no quarto, o seu raciocínio se mostrou impróprio para a solução. Por mais que ele tentasse, as alternativas apresentadas não eram consistentes. Por um lado, a culpa – se é que havia culpado – era do vinho. Talvez fosse da comida também. Quem sabe, o conjunto tenha contribuído para que ele não raciocinasse claramente.

Uma coisa Jorge tinha de positivo: o controle de suas ações. Por isso, sabedor que não ia encontrar caminhos estando naquele estado de letargia, provocado, principalmente, pelo efeito do álcool em seu organismo, ele deixou-se levar pelos devaneios poéticos que costumava declamar em seus momentos de solidão. Gostava de compor poesias, especialmente, as advindas da Literatura de Cordel. Já tinha várias “pelejas” guardadas e, até, algumas já expostas ao público. Era um passatempo. O seu hobby das horas vagas ou quando a saudade apertava – por um ou outro motivo.

Ficou por ali, deitado, sonhando acordado, confabulando prosa e poesia, sem interesse de registrá-las. Apenas meros devaneios. Ficou assim por muito tempo. Ao olhar o relógio, assustou-se. Já passava – e muito – da meia-noite. Eram quase duas horas da manhã. Precisava dormir. Apesar do problema, o sono não lhe faria falta naquela noite. Por isso, levantou-se, foi ao banheiro, escovou os dentes, voltou, apagou a luz, deitou-se e... adormeceu.

Quarta-feira. Cedinho. Jorge levantou-se sem preocupações. Não precisava tê-las. Tudo já estava encaminhado, o que faltava encaminhar, ele encaminharia naquele dia. Também, por mais que quisesse, só tinha aquele dia. Até as duas horas da tarde, nada mais. Ao entrar debaixo do chuveiro, suas imagens eram voltadas para a sua casa. Deu bom dia aos seus filhos e a sua esposa. Desejou a todos eles um dia maravilhoso. Sabia, com certeza, que sua esposa já havia acendido uma velinha para ele. Estava protegido.

Voltou para o quarto, acabou de se aprontar e foi em direção ao refeitório. Sentado a uma das mesas, ele preparou o seu desjejum. Ainda se sentia “confortável” com os alimentos ingeridos na noite anterior. Assim sendo, preferiu comer algo leve, evitando as massas e a comida de panela àquelas horas. De volta ao quarto para escovar os dentes e pentear os cabelos, voltou a lembrar-se do telefonema de César, na noite anterior. De fato, tinha sido um telefonema que o deixara preocupado. Não fosse a sua capacidade de dispersão mental, não teria conseguido pregar os olhos durante a noite inteira, apesar da sonolência causada pelo vinho e do próprio cansaço dos últimos dois dias.

Mas, que era de preocupar, era. O pior que ele achava era ir sabendo, aos poucos, de fatos novos. Fatos incluídos dentro daquilo que ele, antecipadamente, já havia providenciado. Era como se fosse uma escadaria de testes. Em cada degrau, uma nova possibilidade, além das que já tinham sido colocadas. De qualquer forma, mesmo acontecendo esses fatos novos, esperava que o da noite anterior tivesse sido o último deles.

Acabou de se aprontar. Saiu, carregando na pasta, tudo que precisava para ser entregue lá no Ministério Público. Olhou as horas no relógio de parede, colocado na sala de recepção da Casa. Eram, precisamente, oito horas da manhã. Resolveu que iria, primeiro, providenciar o Atestado de Deficiência Física. Ia, a pé mesmo, até o Hospital Walfredo Gurgel. Era pertinho. Dava para ir caminhando. Além do mais, o clima estava agradável, com jeito de quem queria chover e, o sol, por isso mesmo, ainda não tinha colocado suas mangas de fora. Foi andando pelas calçadas olhando o movimento. O trânsito, no entanto, permanecia o mesmo dos outros dias. Não estava “ameno”. Os carros passavam em velocidade, cada um deles tentando conseguir valiosos segundos e, com isso, alcançar o próximo farol verde antes que ele ficasse amarelo ou vermelho. “Era sempre assim”, começou Jorge. “O homem evolui, inventa uma maneira de facilitar seus passos e, ao invés de seguir no ritmo que ele mesmo impôs, tenta, a todo custo, ultrapassar seus limites. Era devido a essa falta de paciência, principalmente no trânsito, que o homem, muitas vezes, perdia todos os segundos que ganhara nos últimos dias e, ainda por cima, deixava os seus presos aos seus segundos que perdera”.

As lojas chiques do bairro estavam abrindo as portas. Suas vendedoras, todas muito bem vestidas e maquiadas, davam-lhe bom dia quando ele passava em frente. Marketing, ou podia ser mesmo, gentileza, educação. Jorge preferiu pensar que fosse a segunda opção. Mais na frente, uma senhora varria a frente de sua casa. Um fato não comum nas capitais. No interior, tudo bem. Mas, varrer a frente de sua casa, em uma capital, mesmo sendo feito por uma pessoa já de certa idade que, provavelmente, tenha vivido a juventude no interior, era um acontecimento raro. Até porque a cidade grande era violenta e muitos dos seus moradores não saíam de suas casas com medo de, em estando em suas calçadas, sozinhos, serem abordadas por maus elementos, levados para dentro de suas residências e lá, subtraídas de seus bens. Mas, apesar do medo, algumas pessoas ainda traziam consigo a tradição de fazerem, elas mesmas, a limpeza de seu pedaço de rua. A prática, em outros tempos, trazia enormes benefícios para a população do bairro, e da cidade, como um todo, pois não se acumulava lixo, nem havia a espera, com lixo a céu aberto, dos carros da limpeza pública.

Ao passar pelo ponto de táxi do bairro, Jorge notou que os taxistas falavam sobre os últimos aumentos decretados pelo governo. Alguns, mais exaltados, diziam impropérios, blasfemavam e se maldiziam pela desgraça. O povo brasileiro é pacato por natureza. Dificilmente ele vai à luta de forma ostensiva e/ou armada. Prefere o desenrolar dos acontecimentos, na esperança de que algo aconteça e modifique o panorama de tudo de ruim que está aí nesse presente. O brasileiro, conceituou Jorge, é aquele homem que tem devoção, que sabe esperar e que confia no milagre de seu Deus. Para ele, mesmo que o mundo esteja pegando fogo, o seu lema é mais ou menos o dito por seus antepassados: “Seja o que Deus quiser”. Também não fosse tanto assim! – emendou Jorge. Já vira movimentos em que o povo tinha ido à busca de seus direitos e por ele, lutado. Muitas das conquistas de sua classe, por exemplo, vieram da luta pública contra os governantes que não valorizavam a profissão que ele exercia. E assim, outras categorias, imbuídas num só objetivo, conseguiram feitos históricos. E, por mais que se diga que nós brasileiros somos passívos, continuou seu pensamento, Jorge, “o povo quando se levanta através de suas verdades e vontades, nada o segura”.

Depois de passar pelo ponto de táxi, Jorge subiu a ladeira que o levava ao Hospital mais popular da capital. Em poucos minutos, estava diante da recepção de seu Pronto Socorro. Dirigiu-se para uma atendente e perguntou se havia algum clínico que estivesse atendendo àquela hora. Foi informado que tinha um clínico atendendo e, que, se ele quisesse ser atendido, deveria preencher uma ficha e esperar a sua vez. Jorge analisou a situação: se fosse embora para outro lugar atrás de uma clínica particular, corria o mesmo risco que ele estava correndo ali, ou seja, de esperar. Ali, pelo menos, trazia dois motivos positivos: um, ele já estava no local. Não precisava procurar outro local para ser atendido; dois, o atendimento era gratuito, o que facilitava a sua vida, pois, se fosse ver pelo lado econômico, ele ainda precisava de dinheiro para poder comprar a passagem de volta para casa. Resolveu preencher a ficha. A atendente mostrou-se solícita e, à medida que era interpelada por Jorge, indicava o quesito a ser preenchido. Terminado o preenchimento, a moça indicou-lhe o corredor onde ficava a sala de atendimento do clínico geral. Quando Jorge chegou lá, o que ele viu o deixou com a sensação das vezes anteriores: um mar de pessoas para serem atendidas. Mentalmente, Jorge contou vinte e duas pessoas. Olhou o relógio. Eram 08h30min.

Resignado, Jorge procurou um banco para sentar-se. Sentou-se ao lado de uma senhora, que carregava no colo um garoto de mais ou menos uns cinco anos. Ele, o garoto, segundo pode observar, parecia estar com febre. Não entendeu por que ele, o garoto, deveria ser atendido por um clínico e não um pediatra. Se bem que, seria fácil de entender – se quisesse – esses contrastes, entre a saúde pública e a saúde privada. Na pública, o paciente estava sujeito ao momento, a disponibilidade profissional de quem estava prestando o atendimento. Podia ser, como no caso, um clínico geral, mas podia ser, um pediatra ou um ortopedista ou até mesmo um cardiologista. Na privada, era diferente. Você, com o poder aquisitivo em mãos, procurava pelo melhor atendimento, esse, de acordo com o seu problema. E não havia, neste caso, indisponibilidade do profissional. A praça estava cheia de bons e maus profissionais. Era uma questão de escolha.

O tempo passava para Jorge. Mesmo sendo um corre-corre a consulta de cada um dos pacientes, contabilizados, em minutos, cada um deles levava, em média, doze minutos para ir, ser atendido e voltar e outro paciente entrar. Isso significava que, para chegar a vez dele, ia precisar de, no mínimo, quatro horas e quarenta minutos. O que, trocando em miúdos, batia exatamente com o horário limite das treze horas da Junta Médica.

Jorge suou frio. Se esse cálculo estivesse correto, ele perderia a Junta Médica e, consequentemente, o emprego. Se saísse dali naquele momento, também estava sujeito a não conseguir um encaminhamento para passar na Junta. Difícil situação. Um dilema que ele teria que equacionar com sangue frio e determinação. Resolveu ficar. Na pior das hipóteses, se ele percebesse que não ia ser atendido a tempo – de sair dali e ir para o Centro Administrativo e passar na Junta Médica –, ele tinha boca. Falaria com a atendente e contaria a sua situação e, com certeza, ela o colocaria para ser atendido antes. Por enquanto, não se fazia necessário isso. Deixou que o tempo tomasse de conta de tudo. Aliás, filosofou consigo mesmo, o tempo é amigo e inimigo de todos nós. É amigo quando nos faz esquecer os momentos difíceis, as mágoas e as intempéries de uma vida e, é inimigo, quando leva para longe as pessoas que mais amamos.

O tempo passou rápido. Jorge em seus monólogos, acabou por desligar-se do mundo ao seu redor. Ouvia apenas quando a atendente chamava “o próximo”. Neste momento, ele olhava no relógio e conferia o tempo que tinha levado o último paciente. Invariavelmente, batia com os seus cálculos.

Meio dia. Jorge se contorceu na cadeira. Já se sentia incomodado com a demora. A sua bexiga reclamava a quantidade de líquido dentro dela. Levantou-se e foi ao encontro da atendente. Antes, porém, olhou para a fila de bancos e contou quantos pacientes tinham para ser atendidos na sua frente: quatro.

– Com licença, senhorita. Onde eu posso utilizar um banheiro?

– Pois não, senhor. É só o senhor seguir aqui em frente, neste corredor. No final dele, virando à esquerda, o senhor encontrará um banheiro para uso público.

– Obrigado, disse Jorge, já se dirigindo para o local indicado. Na sua cabeça, as palavras “uso público” poderiam dar margem a várias interpretações. No entanto, ele não quis discorrer sobre nenhum delas. Esperaria para ver.

Assim que chegou ao final do corredor e virou à esquerda, Jorge viu o letreiro com os dizeres: “Banheiro Masculino”. Diferentemente do que pensara, o interior do mesmo era limpo, muito asseado. O local era asséptico. Pelo menos dava a impressão. Também, ele estava dentro de um hospital onde a higiene deve ser uma constância para poder combater as bactérias que se proliferam no ambiente. Procurou um mictório e lá se aliviou da dor no pé da barriga. Além da dor que causa, e dos problemas que podem acarretar aos rins, a bexiga cheia promove, muitas vezes, surpresas desagradáveis. Uma delas é, pela falta de local adequado, a pessoa molhar as calças ou ter que passar pelo vexame de ter que fazer a sua micção detrás de um poste – em plena luz do dia e em lugares públicos –, ou atrás de veículos.

Aliviado da dor e com a bexiga vazia, Jorge voltou com outro aspecto. Ao sentar-se no seu banco, notou que somente duas pessoas continuavam à espera de atendimento. Dos males o menor. Talvez o médico tivesse atendido a duas pessoas ao mesmo tempo ou uma delas fosse apenas acompanhante. Não importava. O que importava era que logo mais ele seria atendido.

Doze e meia. A atendente chamou pelo seu nome. Jorge se levantou e caminhou para o interior da sala. Lá dentro, um jovem residente. Cumprimentou Jorge e pediu para ele se sentar. Em seguida, perguntou o que ele estava sentindo.

– Doutor, eu estou aqui para que o senhor me encaminhe para uma Junta Médica ou me ateste que eu sou deficiente físico. Como o senhor pode ver, tenho deficiência neste braço e nesta perna, disse Jorge mostrando os membros ao jovem clínico.

O médico olhou para Jorge, meio que desconfiado com a proposta daquele cidadão. Ele já tinha visto de tudo. Inclusive, o “pau” que mais aparecia ali eram pessoas querendo atestados – ora para não trabalhar, ora para que ele, ao dá-los, servissem como documentos para uma futura aposentadoria. Por isso, ele tinha muito cuidado com esse tipo de atendimento.

Apesar de não ser ortopedista, o jovem sanitarista pediu para Jorge tirar a camisa. Ao perceber a deficiência natural, ele o mandou se vestir. Jorge, no momento que percebeu que o médico não estava confiando no que ele dizia, foi explicando o motivo do pedido e para que tal pedido serviria.

No final, o médico atestou-lhe, colocando em anexo, o pedido de uma passagem pela Junta Médica. Jorge agradeceu e despediu-se do mesmo, desejando-lhe sorte. Ele, o médico, devolveu a gentileza.
Jorge saiu do Hospital quase que correndo. Quinze para as treze horas. Tinha que correr. Precisava, urgentemente, pegar um táxi. De onde estava até o Centro Administrativo, de táxi, àquela hora, levaria, no mínimo, quinze minutos. Não tinha tempo a perder. Lembrou-se do ponto de táxi. Rapidamente, por ser descida, chegou logo ao local.

– Uma corrida, por favor. – falou em bom tom.

Um senhor levantou-se de onde estava e dirigiu-se para o carro que simbolizava ser o primeiro da fila. Jorge entrou no lado do passageiro ao mesmo tempo em que o motorista entrava do seu lado.

– Centro Administrativo, por favor. Olha, se o senhor não se importar, eu preciso chegar lá em, no máximo, dez minutos. Pode ser?

O homem olhou para Jorge e resmungou alguma coisa parecida como “vamos ver”. E, em seguida, olhando pelo retrovisor, deu meia volta e arrancou numa velocidade acima da normal.

“Esse é dos bons”, sentenciou Jorge. E era. O trânsito não estava tão congestionado, mas ele soube aproveitar todos os semáforos abertos e, ainda por cima, soube driblar o tráfego de veículos pesados e sair de trás deles.

Treze horas. O táxi parou defronte ao prédio da EMATER, no Centro Administrativo. Jorge desceu rapidamente, perguntou quanto era e ao ser informado, deu R$ 10,00 (dez reais) a mais. Agradeceu ao motorista, elogiando a sua perícia no volante e a gentileza prestada.

– Para falar a verdade, meu jovem, eu não costumo fazer isso, mas eu vi que o senhor estava necessitando, por isso eu me prontifiquei a atendê-lo. Boa sorte e obrigado, retribuiu os agradecimentos, o excelente profissional do volante.

Jorge dirigiu-se para o prédio onde funcionava a Junta Médica. Na entrada, um vigilante.

– Por gentileza, a Junta Médica? – perguntou Jorge.

– Primeiro andar. Mas eu acho que já encerrou. De qualquer forma, o senhor pode subir e verificar, certo? – respondeu o vigilante.

Jorge não perdeu tempo. Subiu o lance de escadas em dois tempos. Quando chegou ao referido andar, viu quando um senhor já de certa idade, de ombros curvados, estava acabando de fechar a sua sala.
Jorge se aproximou dele e perguntou se ele era o médico da Junta Médica. Aquele velho senhor o olhou diretamente dentro dos olhos e acenou com a cabeça que sim.

– Doutor, eu sei que o senhor acabou de encerrar o seu expediente, mas eu preciso que o senhor assine esses papéis para que eu possa assumir um emprego. E, infelizmente, eu não tenho outro dia para vir porque o prazo, para mim, termina hoje. E quero me desculpar, desde já, por só procurar a Junta no último dia e no último minuto, mas foi devido aos imprevistos e à documentação que precisava e que estava providenciando junto aos outros órgãos competentes. Inclusive, doutor, estou acabando de vir do Walfredo Gurgel, onde fui examinado.

– Tudo bem, meu jovem. Sem problemas. Não serei eu a impedi-lo de conseguir o emprego. Fique calmo.

Alma boa, batizou Jorge. O esforço de subir as escadas, a adrenalina liberada e o medo de não conseguir, tudo isso, estava estampado no rosto dele.

O bom homem abriu de novo a sua sala, pediu os papéis para ele assinar, rodeou a sua mesa, sentou-se e mandou Jorge sentar-se. De posse de sua caneta, apenas solicitou que Jorge indicasse onde ele deveria assinar. Assinava um papel que Jorge trazia, fazia uma ou duas perguntas referentes ao documento e, em seguida, carimbava-o. E assim, sem muito protocolo, todos os papéis foram assinados. Quando terminou, aquele velho seguidor de Hipócrates desejou a Jorge muita sorte.

– Obrigado, doutor. Deus lhe pague o favor que o senhor está me prestando, retribuiu Jorge.

– Não há de que, meu jovem. Mas, se Deus na sua infinita bondade quiser “me pagar”, eu terei o maior prazer em receber.

Dito isso, os dois caíram numa risada boa. A simplicidade dentro da profissão. Aquele senhor não se vestia com o manto da superioridade de sua carreira. Apenas exercia-a. Talvez, os anos tivessem lhe dado o discernimento que nesta vida tudo passa e o que fica, na verdade, são as boas ações.

Jorge despediu-se dele apertando a sua mão.

Já na parte térrea do prédio, olhou para o relógio: 13h30 min. Tinha mais meia hora para chegar ao prédio do Ministério Público com a documentação que restava e, com isso, ver seu nome ser incluído no quadro de funcionário do referido órgão.

Lembrou-se de uma série americana que passava na televisão e que era contada em minutos. Todos os acontecimentos eram narrados de meia em meia hora. Talvez fossem de uma em uma hora, não lembrava direito. Só que, cada episódio, era adrenalina pura! Ele, Jorge, se sentiu sendo o próprio protagonista da série. De certa forma, ele havia protagonizado alguns momentos eletrizantes em sua vida pacata, sem novidades, onde os sustos que sentia eram os mesmos: conta de luz, papel da água, conta do supermercado, jogo de cintura para que o dinheiro pudesse dar até o final do mês, etc.

Caminhando e refletindo, ele chegou ao ponto de ônibus. Não podia ir de ônibus, precisava ir de táxi. Estava em cima da hora. Por isso, achou melhor se prevenir. Pegou o celular e ligou a cobrar – já que não tinha mais créditos no celular – para César. O toque característico de que a ligação estava sendo recebida e aceita se fez ouvir quando a voz passou a descrever cada passo para se completar o interlocutório, neste caso, entre ele o encarregado de RH do Rio Grande do Norte, do Ministério Público Federal.

– Jorge? Diga aí rapaz! Estou te esperando. Conseguiu a documentação?

– Sim, César. Estou com elas aqui. Olha, liguei apenas para me certificar que você estava a me esperar. Estou indo para aí. Quando chegar, eu te conto toda a minha saga. Até mais.

– Falou, Jorge. Até mais!

Jorge descarregou-se. Toda tensão, medo, preocupação, dúvidas, pensamentos negativos, surpresas desagradáveis, todas essas coisas tinham ficado para trás. Agora era só entregar e comemorar, quando chegasse a casa, a sua admissão.Um táxi passou. Jorge deu com a mão e ele parou.

– Para o prédio do Ministério Público.

– Sabe onde fica, senhor?

– Sim, sei. Rua Dr. Poty Nóbrega – Candelária.

O carro deslizou, sem precisar correr, em direção ao bairro desejado. Jorge, por outro lado, aproveitava os vidros baixados, para receber a brisa meio quente daquele horário, multiplicada pela velocidade constante do veículo. Não se importava. O vento no rosto não estava lhe incomodando. Tampouco lhe incomodava o passar dos veículos ao seu lado. Estava relaxado. Confiante. Com o dever de missão cumprida.

Dez minutos. Esse foi o tempo que o carro levou para deixá-lo em frente ao prédio do MP. Jorge desceu, pagou ao taxista e se dirigiu para a entrada. Na porta principal, dois policiais. Identificou-se. O seu nome já constava nos registros de autorização da portaria. Jorge subiu os degraus do primeiro andar. Na antessala, a elegante atendente não estava. Ele, Jorge, atravessou o pequeno espaço e bateu na porta seguinte. A porta de César. Lá de dentro alguém o autorizou entrar. Ele entrou.

César estava sentado em sua poltrona de trabalho, lendo algo parecido com uma circular. Quando viu Jorge abrindo a porta, levantou-se rodeou a sua mesa e foi cumprimentar o futuro companheiro de trabalho.

– Tudo bem, Jorge?

– Tudo, César.

– Está com toda a documentação?

– Sim, estou.

– Não falta nada, falta? – brincou César.

– Acredito que não. A não ser que apareça uma documentação nova, disse Jorge, fazendo alusão aos dois telefonemas dados por César, para ele adicionar, aos documentos já exigidos, novos documentos.
César riu. “Claro que não”, falou. “Agora, é só conferir essa documentação que você está trazendo, anexar ao seu prontuário, incluir o seu nome na lista de homologações, fazê-las assinadas pelo Promotor e... Pronto!”.

Jorge entregou toda a documentação. Enquanto César conferia cada documento, ele se perguntava se tinha cumprido os doze trabalhos de Hércules. Nas contas dele, sim. Talvez até tivesse passado. Depois, com calma, ia conferir isso. Mas, com toda certeza tinha passado. É claro que não havia comparação entre os seus “trabalhos” e os trabalhos do filho de Zeus com uma mortal. Porém, só para se vangloriar um pouco, não só realizou os doze trabalhos como, ainda por cima, deu um de “lambuja”, totalizando treze. Por isso, no momento – antes de “estufar” o peito –, ainda esperava o “tudo está correto”.

Foram minutos intermináveis, porém o tempo de espera chegou ao seu final. César levantou-se e procurou apertar a mão do mais novo colega de profissão.

– Parabéns, Jorge, você acaba de se integrar aos quadros da nossa Instituição. Seja bem – vindo!

– Obrigado, César. Desculpe, eu estou emocionado. Os últimos dias foram verdadeiros testes coronários e psicológicos. Agora, que acabou, eu só quero descansar um pouco.

– Jorge, vou confessar-lhe uma coisa, disse César: desde o primeiro telefonema que eu lhe dei, que eu passei a confiar em você. Reconheci, pela sua voz, a sua responsabilidade e o seu desejo de ingressar nesta Instituição. Eu, em nenhum momento achei que você não fosse conseguir. De fato, você passou por testes duríssimos, a começar pelo prazo dado para você providenciar toda a documentação. Isto porque, além de ser um prazo apertadíssimo, ainda tinha o agravante de ser uma sexta-feira, véspera de feriado municipal, o que limitava mais ainda o seu tempo. E, ainda por cima, tinha a questão da viagem. E ainda mais, o restante dos documentos que foram se apresentando ao longo de sua estada aqui. Porém, em nenhum momento eu me decepcionei com você. Pelo contrário. Vi em você uma pessoa determinada, capaz de superar obstáculos e vencer as batalhas. Por isso, meu amigo, eu me permiti um pequeno deslize administrativo, disse, por fim, César, se dirigindo para a gaveta de sua escrivaninha e retirando de lá, um Diário Oficial e entregando-o a Jorge.

Jorge pegou o Diário Oficial, na página que estava circulado, em vermelho, o seu nome.

– Olhe a data, Jorge – disse César.

Jorge olhou. Estava datado da sexta-feira. Isso significava que Jorge já era funcionário do Ministério desde o dia em que fora procurado pelo agora colega.

Foi a gota d’água para ele. Jorge, de repente, deixou que as lágrimas caíssem pelo seu rosto. Deus era muito bondoso para com ele!

– Obrigado, César, disse enxugando as lágrimas que caíam, com as costas das mãos. Você não sabe o que eu passei para poder estar aqui nesta data e nesta hora. Foram momentos cruciantes onde eu conseguia uma vitória e, no mesmo instante, se apresentava uma nova dificuldade para ser vencida.

E Jorge, depois que César lhe trouxe alguns lenços de papel, contou-lhe a sua trajetória desde o horário que recebeu o telefonema até aquele momento.

– Meu amigo, tudo passou. Agora é só você voltar para a sua cidade e, sem perda de tempo, ir direto se apresentar à Promotora da cidade de Janduís. Aliás, e por falar em vitórias e dificuldades, a Promotora de lá entra de férias amanhã, ou seja, amanhã é o seu último dia de trabalho. E ela, ao ser avisada de sua admissão, solicitou o seu comparecimento no trabalho, como sem falta, amanhã, até o meio-dia. Segundo ela, você precisa receber instruções importantes. Portanto, e pelas horas que são, acho bom você se apressar. Com certeza, você ainda tem que passar onde está hospedado, pegar ônibus para a rodoviária, ir para Mossoró, de lá pegar alternativo para Janduís... Ufa! Chega!

Para Jorge, a saga continuava...








Obs. Imagem da internet



Raimundo Antonio de Souza Lopes
Enviado por Raimundo Antonio de Souza Lopes em 23/05/2010
Reeditado em 19/04/2011
Código do texto: T2274909
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