Relicário

Bom, se é manha ou manhã eu não sei. Se quiser saber, consulte a D. Gramática, né ela que tem o domínio de todas as regras, normas, cláusulas, preceitos de como escrever e falar bem a língua? Diante de minha modesta formação, o que posso afirmar é que se for manhã, com certeza é grafado com o til, agora, se for manha não tem é nada e se for manha de menino buchudo, boca mole, de chupeta na bola e desconfiado, é bem fácil, facílimo de tirar, arrancar goela a baixo. É só jogar um punhado de milho seco no chão, dar aqueles famosos dez bolos em cada mão, bem contados, usando uma boa palmatória feita de madeira bem fornida, uma cadeira bem pesada na cabeça,colocá-lo de joelho sobre os milhos e olhando para a parede e pronto...

Dezoito, dezoito anos de magistério, é mole? É mole?

Dezoito anos engolindo pó de giz. Tem gogó que aguente? E olhe que o grupo escolar nem era reformado ainda, eu lembro bem. Tinha duas salas de aula funcionando por três turnos (manhã, intermediário e tarde), uma cozinha e outra sala que servia de diretoria, secretaria, biblioteca, almoxarifado, enfim, sala de professor e reuniões. D Dezoito anos educando de sol a sol. Chegando a sala de aula todos os dias, prontamente, meia hora antes do horário combinado para começar a lecionar. Estava eu lá, em pé, na porta da sala organizando a fila.

_ Você pode entrar. Você, oi criancinha linda de tranças no cabelo. Pare, vá ao banheiro se assuar. Você, veja, pisou no coco da vaca, podre, vá se limpar _ E assim todos iam entrando, um a um e se posicionando em cada cadeira. Guardavam o material trazido em sacos de embrulho e ficavam de pé até eu entrar em sala, puxa o hino nacional, da bandeira, da República e do estado. Rezava por papai, por mamãe e por mim, né, que não sou besta.

Dezoito anos escrava do meu ofício, ensinando a ler, escrever e a ter bons hábitos, amor a pátria, a Deus e a família. Depois da cantoria e da reza, mandava fossem a instante e pegassem as cartilhas, parassem de mascar chicletes que se eu pegasse ia para o cantinho feio ou ficava sem o recreio e sem a merenda. Abria na página certa e começava meu martírio:

_ Que letrinha é essa que tem dois buchinhos meus amorzinhos?

_ BBBBBBBBB!

_ Muito bem, muito bem. E essa redondinha de perninha puxada?

_ AAAAAAAAAA!!!

_ Juntando o B mais o A, temos?

_ BAAAAAAAAAA.

_ E essa letrinha que parece um e crescido? Sai debaixo, sobe lá em cima, volta e fica em baixo de novo?

_ LLLLLLLLLLLLL!!!

_ E a letrinha que vocês já sabem, redondinha com uma perninha puxada?

_ AAAAAAAAA!!!

_ Juntando L mais A, temos:

_ LA.

_ Isso mesmo. Agora eu tenho B mais A igual a :

_ BA,

_ L mais A igual a...

_ LA.

_ Quando eu Junto BA mais LA temos...

_ CONFEITO!!!

Aquilo me dava um piripaque, um calafrio, um nervosismo que para voltar a ser eu novamente demorava um pouco e de impulso eu dizia logo:

_ Confeito? Confeito o que condenados, trombose dada em pé de pote, grilo arrependido por ter saído de casa em noite de tempestade, confeito é doce e estraga os dentes, querem ficar banguela é?

Dezoito anos de magistério, desde o dia que terminei o ensino normal, meu magistério e de diploma na mão e anel no dedo, meu pai foi falando com o prefeito da época, primo dele em terceiro grau, e arranjando esse emprego para mim. Dezoito anos ensinando um tal de hiato que é o encontro de duas vogais que se separam. Ora mais, quem já se viu isso, um encontro separado? Dezoito anos e olhe os dois calos ganhos nas cordas vocálicas, isso mesmo, cordas vocálicas de tanto tomar a lição:

_ Rosinha, minha flor. Tão linda suas tranças. Foi mainha que fez, foi? Para ficar mais linda ainda diga para a tia: A de quê, meu amorzinho?

_ A de avião _ E olhe que a condenado nunca tinha visto um antes. Via avestruz, árvore, atalho, mas avião? Faz-me rir...

_ E você Pedrinho, está gripado? O nariz escorrendo direto... Menino, não limpe o catarro na camisa da farda! Ai meu Deus, engoliu, figa, foi pior. Vamos, diga de uma vez, E de quê?

_ E de “alefante”. Dizia passando a língua no lábio superior...

_ Só se for “alefante” mesmo, seu meninos de modos duvidosos. Marche já lá no banheiro, vá assuar esse nariz! E você Clarice, I de quê?

_ Isso eu seu, eu sou crente. Todos os dias eu escuto meu pai falando lá em casa uma palavrinha com esse som.

_ Oh, que bom, então diga pra tia e para seus coleguinhas, menina de olhos cor de mel.

_ I de in-gre-jaaaaaa.

_ Só sendo “ingreja” mesmo. E eu tinha de agüentar, ter paciência, ficar calma, educar... E você Marilu, O de quê?

_ Alfato! !!

_ Como?

_ “Alfato”, tia, num sabe não? O “alfato” do narizinho por onde a gente sente o cheirinhos das coisa.Minha vó que diz todos os dias lá em casa. Temos de ter bom “alfato” pra sentir o “prefume” das flor.

_ E você Joãozinho, a letrinha U?

_ U é o mais fácil, o que mais tem por aqui, U de aurubu.

E de tanto som de A e A e An todos colavam grau no fim do ano. Aprendiam o alfabeto, a juntar os pedacinhos, a separar as sílabas, a circular os hiatos e saber da sílaba tônica. Assinavam o nome e diziam enormes palavrões. Desse jeito eu já tenho alunos vereadores, prefeitos, camelos, aqueles que carregam a feira e tenho também camelô, uma ruma no ramo da pirataria, vez por outra correndo da polícia para não sofrer porrada.

Dezoito anos de magistério e olhe o tamanho dos calos, do tamanho de duas pitombas. Vou à médica e a desgraçada manda que eu arreganhe minha boca, ponha a língua para fora, mete um pedaço de pau goela a dentro, manda que eu diga lá uma bando de sons e gemidos e depois diz:

_ Uma coisinha leve, vai comer uma maça todos os dias antes de dormir, descansar durante um mês falando apenas o necessário.

Eu olhe aquela amarela de uma fica e disse

_ Doutora, um mês é muito pouco. Só um mês em casa. Dezoito anos de magistério sem nunca tirar uma licença se quer e só ganhar um mês de afastamento para tratamento médico?

_ É a lei _ Foi o que ela disse.

_ Que lei que nada sua vigarista mal nutrida, isso se chama má vontade, isso sim, falta de amor ao próximo. Queria ver, queria ver se fosse médica ou se tivesse um sobrenome de peso, além disso, tá pensando o que, que ganho muito para todos os dias me dá o luxo de comer maça?

Saí dali com dois quentes e um fervendo, pensando que aquelazinha mais parecia uma seriema que uma médica. Não contei conversa, disparei para casa de meu pai virada num traque. Lá chegando e ele lendo nas minhas fuças a indignação, quando desabafei foi logo dizendo que não ia ficar daquele jeito não, não era assim como eles pensavam não. Pôs o chapéu na cabeça, me pegou pelo braço e foi logo bater na porta de um certo conhecido que ele havia apoiado para vereador. No papo logo conseguiu mais dois meses. Era o mês de Setembro, um mês dado pela médica, dois conseguido pelo vereador, assim ficaria três meses em casa, Janeiro e fevereiro férias, ficaria cinco meses em casa e pense como foi bom.

Dormi, acordei tarde, passeei e quando pensei em voltar, greve, diz aí, mais dois meses em casa e nessa pisada fiquei foi sete, sete meses afastada da escola. Lá chegando de volta, a diretora disse que precisávamos conversar porque o tempo que eu tinha ficado em casa muita coisa tinha mudado na educação, diz aí, dezoito anos que fiquei em sala nunca tinha visto nada mudar, sete meses afastadas e choveu de reformas, mudanças. Pode uma dor de barriga dessas?

Aquilo já me deu uma coisa ruim, e ela continuou. O que antes eu entendia por alfabetização, agora era letramento. O que antes era série, agora era ano. E eu que tinha passado dezoito anos de minha vida dedicada a primeira série alfabetizando meus menininhos pelos caderninhos herdados da minha avó, a mestra mais antiga daquele lugar. Os caderninhos com as folhas amareladas, antigas e gastam pelo tempo Amarelinhas, amarelinhas, cheirando a naftalina, com a letra caligráfica desenhada, redondinhas que faziam gosto de ver, da minha vó e os belos versos do Casimiro de Abreu, agora tinha que lecionar o quinto ano. E agora meu Deus, o que eu ia fazer? Vendo que eu tinha perdido a cor, a diretora resolveu sair da sala para pegar um copo com água. Nesse meio termo, o telefone toca e eu atendo. Alô, quem tá falando? Sou eu... muito bem, você está sendo convocada para participar de um encontro em Natal, uma semana com tudo pago, num hotel, pelo governo do estado. O encontro é sobre: Mediadores de Leitura. Aí eu disse, oba, só pode ser obra de Deus. Passar sete meses afastada da escola, voltar e ser contemplada com um passeio, uma semana da capital, vou na hora. O tal encontro eu não sei não, mas lá tem o “shop miduei”, "as escadas volantes", "a orlia da praia", "os outros shoppes", eu vou, vou na hora ser bacana na capital. E assim fiz.

Dezoito anos de sala de aula e nunca tinha entrado numa boutique, fui, comprei vários conjuntos novos, algumas combinações, uma mala de rodinha rósea, um blach e um batom. Dois pares de vestidos estampados e dois estojos de sandálias e tamancos. Pronta minha bagagem, ah, levei meus lençóis e toalhas bordados que tinha ganhado nos meus quinze anos e nunca tinha usado. Coloquei a chapa de molho no cloro para clarear e pintei os cabelos para parecer mais jovem.

A viagem até que foi boa, um carro confortável e um bando de mulher barulhenta, todas já acostumadas a ir a capital e eu indo pela primeira vez, depois de dezoito anos em sala de aula aguentando catinga de pum de menino malovido. Logo na entrada já me deu calafrio, nossa, aquela ruma de prédios tão altos, uma correria de carros, Deus do céu, uns por cima e outros por baixo, num tal lugar chamado de viaduto. Meus olhos brilhavam mais que estrondo de noites de São João.

Chegamos num tal hotel do encontro, menino, se eu contasse a minha mãe ela não acreditaria. Era um local tão grande, tão limpo, tão... Logo na entrada, a mulherzinha ia me entregando um convitezinho bonitinho e eu não entendia, ela estava me convidando para quê? Eu nem a conhecia e foi me conduzindo a uma sala cheia de umas mesas e outro bando de mulheres falando sem preocupação... Dezoito anos, dezoito anos e eu não estava mais entendendo nada. Foi aí que a mulherzinha que antes havia me entregado o tal contive começou a dizer que poesia tem a alma leve e corpo ritmado... E eu comecei a viajar por sentimentos nunca antes sentido em toda minha vida... Uma onda de desarrumação foi tomando conta de mim e logo as imagens de minha sala de aula, o rosto de cada criaturazinha que havia passado por lá...A importância que eles tiveram na minha vida e eu na deles. A poesia, a alma leve, o corpo ritma.... A barriga de gestante, Nossa, comecei a ver a mim mesma em minha frente e uma vontade enorme de mudança de fazer o diferente a se apossar dos meus sentidos.

Passei a ver os caderninhos amarelados da minha vó, a letrinha tão bem desenhada, as poesias do Casimiro... " Que os anos não trazem mais!".... O que tinha passado, o passado não trazia mais, mas o futuro? Passei então a me ver pelo avesso, num outro universo poeticamente reconstruído. O novo, o tempo, o novo tempo, a esperança de sempre poder recomeçar.

Dezoito anos, dezoito anos de sala de aula e só agora percebi que neste exato momento tudo poderia estar começando, porque é sempre tempo de recomeçar.

Na volta para casa, criei meu relicário, depositei os lindos cadernos da vovó, as recordações da velha professora que era eu e passei a acreditar que através daquele encontro passaria a ser uma mediadora da leitura de novos tempos, de novos caminhos...

Quanto tempo? Eu já nem me lembro mais, porque a cada dia, agora, é sempre um novo dia, de se viver sem contar o tempo que faz.