A TURMA DO ZÉ RUELA CONTRA O MALVADO TRÊS-OITÃO

A partida seria no velho campinho de terra batida que ficava no fim da Rua dos Antúrios. Ao lado do campinho passava o Córrego dos Mosquitos e nos fundos ficava a casa da dona Amélia, cujo quintal era cercado por uma cerca de madeira e infestado de galinhas. O Tião, filho da dona Amélia, ia trazer a bola e seria o encarregado do apito. O Tião era muito respeitado, pois tinha ganhado o campeonato de vira-cerveja no Boteco do Clodoaldo, que era de propriedade do Clodoaldo, um ex-lateral direito, reserva, da Pavonense. Clodoaldo era pai de Picolé, o craque do Zé Ruela Futebol Clube – o nosso time.

Nas vésperas daquela partida a escalação do Zé Ruela ainda não estava totalmente definida. O jogo seria contra o time do Três-Oitão, um galego de 1,90m que morava no Bairro da Saudade, que ficava a cerca de sete quadras do campinho. A peleja foi marcada depois que o Três-Oitão intimou o Picolé durante o Bailão do Risca-faca, realizado no último sábado no Clube Centenário, aqui pertinho de casa. O problema se assucedeu quando o Picolé deu em cima da Doralice, o grande amor platônico do Três-Oitão. O galego considerou uma afronta e partiu para cima do Picolé. O pior só não aconteceu por conta da turma do deixa-disso.

O fato é que o Três-Oitão segurou a barra, para não parecer bobo na frente da Doralice, mas não ia deixar barato: acusou o Picolé, e todo o time do Zé Ruela, de amarelão. Pra quê?! Se tinha uma coisa que o Picolé não aceitava era ser taxado de covarde. Foi aí que ele resolveu tirar a prova dos nove e agendou para a tarde do outro sábado o jogo. A escalação do Zé Ruela F.C. contava com Cotoco no gol; Ferramenta, Meio-metro, Balança-mas-não-cai, e Maria-vai-com-as-outras na zaga; esse que vos fala, Picolé, Juca Bala e Doblevê na meiuca... mas era no ataque que tínhamos um grande pepino para desentortar. Apolo 13, um ponteiro rápido, agudo e incisivo, já tinha confirmado a participação, contudo, faltava o homem de área. E a melhor opção que tínhamos à mão era o Filomena.

Filomena, que odiava o apelido, era um moleque alto, mas habilidoso. Bom no cabeceio e chutava com as duas pernas – não ao mesmo tempo, é bom que se diga. O que constava na Rua dos Antúrios é que ele já havia marcado mais de 100 gols naquele campinho, e olha que o rapazote tinha só 18 anos. Seria tiro-certo se ele estivesse na equipe. O problema é que o Três-Oitão tinha jurado o garoto de morte depois que descobriu que o Filomena havia mandado uma carta de amor para a Carminha, a irmã mais nova do Três-Oitão. A Carminha, que adorava ver o circo pegar fogo, contava tudo para o Três-Oitão e revelou para ele que, dias antes da carta, o Filomena já havia tomado certas liberdades, digamos, libidinosas com ela.

Segundo relatos, o fato se deu numa sexta-feira no Boteco do Clodoaldo, de propriedade do Clodoaldo, data em que acontece o famoso Samba da Vela. O Filomena teria chegado ao local por volta de 18h30, sentou-se à mesa perto da banda e dê-lhe tomar cerveja. Quando soou a meia-noite ele já estava mais louco que saci pulando pogobol. Levantou-se, foi até a Carminha e falou um par de bobagens ao pé-de-ouvido. A Carminha riu provocativamente e disse “não”, com aquela cara de sem-vergonha que só ela sabe fazer. O Filomena saiu injuriado e voltou para a sua mesa. Quando retornou para casa, por volta das 3 horas da matina, escreveu a carta, saiu de novo e colocou o envelope por entre as frestas da persiana do quarto da Carminha.

A Carminha mostrou a carta ao irmão e o Filomena ficou se pelando de encontrar o Três-Oitão. Ainda mais que o galego era beque central e marcaria o Filó de perto. Só havia uma solução, fazê-lo criar coragem e desbancar o inimigo onde o Filó era melhor: no campo. Formamos uma comissão de notáveis e rumamos para a casa do Filomena para convencê-lo a jogar. Fomos eu, Doblevê e o Maria-vai-com-as-outras. Conversa daqui, conversa dali e o cabra se mantinha irredutível. Foram quatro horas de negociação até que ele topou com algumas condições. Primeiro, tínhamos que garantir sua integridade física. Ou seja, no caso do Três-Oitão apelar, todo mundo ia partir para cima e defender o Filó. Segundo, colocaríamos “seguranças” à paisana espalhados ao redor do campinho. E, terceiro, não o chamaríamos mais de Filomena. Confesso que este foi o item que causou maior discussão, mas valia o sacrifício. No fim, aceitamos todas as exigências e saímos dali com a certeza de que a vitória seria nossa.

A concentração para o jogo foi marcada na casa do Ferramenta, nosso zagueiro e batedor de longa distância – tanto nas faltas quanto no caso de briga generalizada. Para descrever o Ferramenta basta dizer que ele não usa caneleira, nem meião, e, dizem, guarda uma chave-inglesa na cueca. O time chegava aos poucos. Primeiro foi o Cotoco, que ganhou o apelido depois que o Balança-mas-não-cai o viu pelado no vestiário do Clube Centenário. Já o Balança era conhecido antigamente por João-Bobo, só que o pessoal achava muito informal e decidiu dar-lhe um nome mais pomposo. O Maria-vai-com-as-outras é irmão caçula do Balança e herdou o estigma. O Meio-Metro, que chegou na sequência, se chama assim por questões óbvias. Logo depois vieram o Picolé, que tomava metade do freezer de sorvete do boteco do pai quando pequeno, o Juca Bala e o Doblevê (nascido Walter Wellington Machado). Por fim, chegamos eu e o Apolo 13. Mas cadê o Filomena?

Estava atrasado. O time todo já havia chegado, faltava apenas uma hora para a disputa e nada do Filomena. Na espera, já tinha ido um engradado de cerveja goela adentro e iríamos começar a preleção, comandada pelo nosso treinador – o seu Clodoaldo, dono do Boteco do Clodoaldo. Estávamos nessa quando irrompe, todo arrebentado e com o nariz sangrando, o Filomena. O que é que aconteceu, moleque?, perguntei. O Três-Oitão me pegou na curva, ele respondeu. Resumindo, o pouca-idéia do Filomena, na iminência do encontro com o galego no campinho, temia não sobreviver e decidiu despedir-se da Carminha. Um ato heróico, mas estúpido. Arrancou um chumaço de flores que encontrou no meio do caminho e partiu como um Dom Quixote rumo à casa da amada. Bateu na janela e, com as flores numa mão e um papel com uma poesia mal-riscada na outra, preparou-se. A janela abriu e o Três-Oitão emendou-lhe um direto nas fuças.

Mas, calma, aquilo havia aguçado o bravo que se escondia por detrás do pseudônimo feminino e o Filomena decretou: eu vou jogar, e nós vamos arrebentar com eles. Dito e feito. O Zé Ruela Futebol Clube meteu 5 a 0 no time do Três-Oitão – fora o baile. Só o Filomena enfiou quatro gols. Foi um festival de canetas, chapeuzinhos, dribles da vaca, letra, corta-luz... um espetáculo. Jogávamos tão rápido e desconcertadamente que nem bater o Três-Oitão e sua corja conseguiam. O pessoal do bairro, que foi assistir em peso, ficou de boca aberta em volta do campinho. Todo mundo estava lá, inclusive a Carminha e a Doralice.

O jogo já ia acabar quando uma galinha, fugida da casa da dona Amélia, invadiu o campo. Por um momento todos olharam para a galinha que atravessou de área a área ziguezagueando e escapulindo de todos. O Filomena estava com a bola dominada e tinha o Três-Oitão à sua frente. O gosto azedo da desforra subiu do estômago à boca do Filomena em segundos. Os olhos dos dois se encontraram. Filomena firmou bem a bola sob os pés, agitou os braços imitando duas asas e mandou: có, có, cococó, có, có!. O Três-Oitão, espumando de raiva, partiu seco pra quebrar o Filomena ao meio, mas o menino, na agilidade de seus 18 anos, desviou-se e o galego passou reto, tropeçou e só foi parar dentro do Córrego dos Mosquitos.

Neste instante, o Tião, que conseguiu recapturar a galinha, apitou o fim do jogo e a torcida invadiu o gramado. Três-Oitão sentia-se tão humilhado que foi embora sem deixar rastro. O time todo do Zé Ruela corria na direção do Filomena quando a Carminha o pegou pelo braço. “Parabéns, Filó, meu querido!”, ela sussurrou. “Esse não é o meu nome”, Filomena respondeu de maneira seca e dando as costas. A equipe toda começou a jogar o Filomena para o alto enquanto gritava o seu nome... o seu verdadeiro nome.