O Dentista

O DENTISTA

Muita gente de Vila dos Remédios - um povoado do interior nordestino, só o tratava de "doutor" Eleutério. O nome deve ter sido escolhido pelos pais, no dia do seu nascimento, coincidindo como o santo-do-dia, impresso na folhinha, em que marcava os dias do ano, suspensa numa parede, adorno imprescindível nas residências dali. Ele, diziam as más-línguas, nunca havia passado nem por perto de qualquer escola superior. E odontologia, como qualquer outro curso superior, naquela época, limitava-se aos privilegiados da sorte das principais capitais do Nordeste.
Eleutério, meio bicho-do-mato, sem qualquer traquejo social, raramente saía das brenhas, onde morava e, na verdade, onde se criou. Vez por outra, numa necessidade premente, rumava até a Capital, espremido numa das "jardineiras" que faziam o transporte de passageiros naquela rota, sem esperança nenhuma de ser asfaltada. Os derivados do petróleo, como o asfalto, por exemplo, ainda era um sonho irrealizável para o Brasil. O barro duro de massapé era que forrava as estradas e caminhos, empoeirados no verão e lamacentos no inverno, pelo interior do Estado.
Carregava a frustração de não ter freqüentado uma faculdade, de não ter sido um doutor de verdade na arte de tirar dentes, como os profissionais que atuavam nas cidades grandes, mesmo do Nordeste, onde o progresso chegava com muito atraso, em comparação às cidades do Sul do país. Isso, por muitas vezes, ele confidenciava a Maria das Dores, sua companheira de tantos anos, que, na sua "santa" ingenuidade, considerava Eleutério o mais perfeito dos homens. Externava para a mulher que brincava de "dentista", improvisando com peças de madeira, que ele mesmo criava, lembrando instrumentos utilizados pelos verdadeiros profissionais, fazendo seus "clientes", além dos irmãos, certos amigos, seus vizinhos mais próximos.
Cresceu com aquela idéia, que levou avante até certo dia em que foi à Capital para se profissionalizar. Já havia extraído, com alicate, exercendo a prática do seu futuro trabalho, dentes infeccionados de cavalos e bois na fazendinha do seu pai. Para usar o aparelho de tratamento de cáries, chamado popularmente de broca, ele não teve dificuldade, porque, interessado que era, não perdia as ocasiões de acompanhar a mãe ao dentista, na sede do município, observando atentamente o que o profissional fazia na boca da sua genitora. Convicto então da sua habilidade, do seu pendor para aquele trabalho, aos poucos foi adquirindo o necessário para abrir o seu "consultório" no lugarejo, onde vivia, o distrito de Vila dos Remédios. E, aos poucos também, ia sendo conhecido como "doutor" Eleutério.
O exercício ilegal da profissão, naquela época, pelos idos de 1940, se existia, ninguém levava em conta; não se ligava para isso. Nem hoje, mesmo com as leis mais rigorosas, não estão respeitando. Os charlatões estão por aí afora, enganando os incautos. Avalie nos tempos do Eleutério... A verdade é que o nosso personagem criou fama ali e na redondeza, pedalando uma engrenagem, adquirida nos ferros-velhos da Capital, para acionar um pequeno motor, que fornecia a rotação necessária à sua broca para tratamento de cáries da sua já bem formada clientela.
Não precisou de nenhuma propaganda. Também não havia por ali meios para isto, a não ser mesmo a boca do povo. Logo a gente simples do povoado ficou ciente da instalação do consultório do "doutor" Eleutério, que ficava anexo a um dos lados da sua residência, facilitando, assim, a sua comunicação com a esposa, ou com os filhos. No entanto, quando com algum "cliente", principalmente do sexo feminino, sentado na sua desconfortável cadeira-de-dentista, não esquecia a placa na porta (trancada à chave): Estou trabalhando. Não interrompa! Não tinha pressa no atendimento.
Maria das Dores, a esposa, era um exemplo de mulher. Nasceu para ser dona-de-casa. Além disso, dentro da sua santa inocência, confiava piamente no marido. Nunca levou a sério o que ouvia falar de Eleutério pela boca das "comadres" da vizinhança. Mulherengo quase todo homem é. Isso é de nascença, proclamava no seu jeito manso de falar, quando ouvia algum zum-zum-zum relacionado ao marido. Para Eleutério, se garantia, só existia ela, batendo, vaidosa, com a mão direita espalmada no peito. Nunca duvidou da infidelidade do esposo desde aquele dia em que ele jurou, no altar, ser fiel etc e tal, diante do padre Alípio, o respeitadíssimo vigário daquela agreste região do Nordeste.
O almoço está servido, meu bem! Ou a merenda tá na mesa! Era sempre a voz de "das Dores", como a tratava, que, por ordem dele, não permitia que as crianças batessem na porta do "consultório" quando alguém estivesse lá dentro.
Por desconfiança ou não, certo dia, despretensiosamente, o questionou:
Meu bem, usando da tua franqueza, me diga se tens coragem de me trair com uma dessas mocinhas que aparecem aqui para tratar dos dentes?
E ele, surpreso, dando de ombro, frisou a testa, sentindo-se, por certo, pilhado, com a interrogação da mulher, gaguejou e, atônito, com palavras desconexas, hiperativo que era, só conseguiu dizer: Qué... qué... isso, mulher! Tu... tu... ta maluca! Qui... qui conversa é... essa?
A vida passava sem pressa em Vila dos Remédios como é normal, ou era normal, naquelas plagas nordestinas. Hoje, bem distante dos anos 40, como a população brasileira cresceu descompaçadamente por todos os lados do nosso território, Vila dos Remédios também não ficou pra trás; não vive mais, por certo, aquele marasmo que não impunha nenhuma pressa a Eleutério para ser breve no atendimento aos seus clientes, ou às suas clientes, melhor dizendo.
E, a propósito, Maria Das Dores, que era ingênua, de paz, mas não era idiota, como, quem sabe, o marido pensasse, intrigada, perguntou outra vez a Eleutério: Sabe o que é, bem? É porque eu tenho observado que umas dessas "sirigaitas" que vêm aqui, demoram tanto a terminar o tratamento dos dentes... E passam um tempão fechadas aí dentro com você. Isso é normal?
Muito esperto, ele tinha sempre uma saída pela tangente. Enrolava Maria das Dores com a maior cara-de-pau deste mundo, com "explicações" que ela terminava por considerar convincentes. Até mesmo quando ouvia uma das "clientes", como que gemendo - talvez de dor, pensava Das Dores:
Não vai doer não, doutor Eleutério? Será que não? Estou com medo! Ai! Ui!
Era sempre a mesma lamúria. E ele, muito paternal:
De maneira nenhuma, minha filha. Vou passar isso aqui, oh! Você vai até gostar. Garanto. Se doer, você diz e eu tiro,ta?
Talvez fosse clorofórmio, que era o anestésico, naquele tempo, usado pelos dentistas-práticos lá pelo interior do Nordeste.
Naquela altura dos acontecimentos, Das Dores já sentia uma pontinha de ciúmes, porquanto conhecia as maneiras não tão gentis do marido, mesmo com o bom relacionamento que mantinham. Nunca a destratou, sabia disso. Mas, diante dos gestos "muito amáveis" com que tratava as suas "clientes", passou a estranhar aqueles seus modos, que considerou: carinhosos demais para o meu gosto. E no somar dos dias, dos meses e dos anos, aquilo foi se transformando num misto de confiança e dúvida, pesando mais para dúvida.
Mesmo sem nenhum preparo acadêmico, Eleutério criou fama de "bom profissional" para aquela gente simples de Vila dos Remédios, tirando daquilo, financeiramente, muito pouco para sustentar a família. E isso foi o meio encontrado por Das Dores para afastar o marido daquele meio de vida, estimulando-o a se dedicar, por inteiro, à fazendinha que herdou do saudoso pai, onde restavam algumas vacas leiteiras e caprinos, especialmente, naquela ocasião, arrendada a um conhecido da família.
Os sábios conselhos da fiel e dedicada esposa, companheira de longos anos, surtiram benéficos efeitos. A fazendinha prosperou. Bons lucros logo apareceram. E veio a oportunidade de poder se transferir para a Capital, ensejando aos filhos um lugar adiantado para se educarem e se profissionalizarem de verdade.
Das Dores, agradecida aos Céus, livrou-se dos disse-me-disses das comadres de Vila dos Remédios, que, amiúde, fofocavam que muitas crianças dali eram frutos das "consultas" das mocinhas com o "doutor" Eleutério, que não povoou mais a cidadezinha porque havia sido "capado", submetido que fora a uma cirurgia radical da próstata.
A vida de Das Dores e Eleutério passou a ser, dali pra frente, mansa, bela e fagueira até um dia em que uma bella ragazza, no verdor dos seus 15 anos, os surpreendeu, quando repousavam em suas redes na varanda da casa do sítio, pedindo a bênção de Eleutério e o seu reconhecimento como filha, gerada que fora, como explicou, na sua velha e incômoda cadeira-de-dentista.
Ele não contestou a ragazza. O seu silêncio falou por ele...


Pablo Calvo
Enviado por Pablo Calvo em 15/04/2010
Código do texto: T2198330
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