O homem que falava com os pássaros
Dia 1 de abriu de 2010; nove horas da manhã, cemitério Jardim da saudade em Edson Passos, bairro de Mesquita, que por sua vez é um município do estado do Rio de Janeiro.
Um grande número de pessoas estava reunido naquela manhã, todos em redor do que era o Jazigo de um grande homem que havia falecido no dia anterior; ali estavam parentes, colegas, amigos e até mesmo alguns desconhecidos.
Prudêncio Moraes foi um advogado que morreu aos oitenta e três anos, teve uma carreira profissional impecável, possuía seu escritório particular onde cuidou de vários processos legais e litígios diversos com extrema habilidade, até decidir que ia parar de exercer a profissão completamente no ano de 1997; com isso ele passou a se dedicar ao ensino universitário, coisa que já fazia concomitantemente com as atividades do escritório. Do ano de 97 até sua morte em 31 de Março de 2010 Prudêncio lecionou várias matérias para a universidade ABEU em Nilópolis, município vizinho.
Àquela altura, obviamente o escritório ficou a cargo dos filhos, dois, Jônatas e Rebeca, que já trabalhavam com o pai; ambos advogados, porém, Rebeca havia se especializado na área tributária, ao passo que Jônatas era mais da área trabalhista, e desta forma conseguiram uma carteira ainda maior de clientes, expandindo assim o negócio da família com alguns outros advogados associados.
Naquela manhã no Jardim da Saudade, o pastor tinha acabado de cumprir todas as formalidades da cerimônia de sepultamento; o caixão já havia sido depositado sobre o lugar apropriado e os funcionários do cemitério já o estavam baixando para o descanso eterno sob uma pesada salva de palmas dos que tinham comparecido. Logicamente a família estava muito emocionada, estavam presentes os dois filhos e os quatro netos, sobrinhos, genro e nora; um irmão mais novo de Prudêncio e vários amigos dentre os quais dois conversavam mais afastados do restante da verdadeira multidão que estava ali prestes a presenciar algo inacreditável. Eram estes; Mathias Vasconcelos, professor universitário, amigo de Prudêncio de longa data e Watler Neto uma espécie de discípulo.
Cada pessoa ali, homens e mulheres; meninos e meninas; jovens e adultos havia se vestido com seus trajes formais para a ocasião; ternos e vestidos em sua maioria de cor preta ou azul marinho, óculos escuros e também por pedido da família, cada pessoa segurava uma rosa que seria depositada sobre o caixão quando este fosse acondicionado dentro do jazigo perpétuo da família Moraes. Segundo os filhos, aquela rosa era um pedido do pai; ele teria dito que pediu para alguns amigos que quando fossem ao seu enterro, levassem rosas para jogar sobre o caixão.
O jazigo já pertencia a família, mas fora reformado sob a supervisão do próprio Prudêncio, no ano de 1990 e tinha em sua cabeceira uma réplica magnífica em tamanho aproximado da estátua da Justiça, exatamente igual aquela feita por Alfredo Ceschiatti e que está em frente ao Supremo Tribunal Federal em Brasília. Aquela era, talvez, a única obra de arte que parecia fascinar Prudêncio Moraes. A dama assentada com os olhos vendados para demonstrar sua imparcialidade e a espada, símbolo da força que a justiça dispõe para impor o direito, repousando sobre o seu colo.
Mathias e Neto se conheceram por intermédio de Prudêncio, aliás, Neto foi aluno de Prudêncio e depois de já estar totalmente formado e trabalhando na área, visitava o amigo e ex-professor várias vezes no mês, geralmente nos domingos, na casa da família Moraes, no bairro Presidente Juscelino Kubitschek, para conversar sobre vários assuntos. Mas nos últimos tempos Prudêncio o havia assustado muitas vezes com algumas conversas no mínimo estranhas.
Mathias era um homem grande e corpulento, costumava estar sempre muito bem vestido e gostava de seu bom gosto com algumas extravagâncias, era inteligente e ao contrário do que sua apresentação mostrava, era abnegado, companheiro e um verdadeiro amigo. Durante muitos anos fora uma das pessoas que dividiu os projetos com Prudêncio, uma espécie de co-piloto, como eles costumavam brincar. Mathias também tinha compartilhado das histórias esquisitas que Prudêncio vinha soltando para seus familiares e amigos mais íntimos.
Neto se aproximou de Mathias e disse num tom baixo para não ser ouvido:
_ É uma justa homenagem.
_ É; ele foi uma pessoa extraordinária._ Disse Mathias.
_ Me ensinou muito do que eu sei._ completou Neto.
_ A todos nós.
As palmas continuaram por mais alguns instantes.
_ Quando foi a última vez que você falou com ele?_ Mathias perguntou.
_ Faz uma semana. Ele estava perfeitamente bem, como sempre, esbanjando vitalidade, exceto pela conversa de sempre.
_Os pássaros?
_É.
Um silêncio curto cortou a conversa.
_ Não conheci ninguém que tenha procurado tanto um ideal, como Prudêncio buscou a justiça. _ Neto observou.
Mathias concordou com um movimento de cabeça. E o outro continuou:
_ Ele disse certa vez, quando eu ainda era aluno dele, que o homem não conhece a justiça, geralmente empregamos vinganças, e que isso nos satisfaz. Vinganças morais, sociais, psicológicas, mas que a virtude está em buscar a Justiça pura.
_ Ele ficou obcecado._ Balbuciou Mathias.
_ Pode ser, mas se tivéssemos mais pessoas com a visão de justiça que ele tinha, então o país seria outro.
_Foi por isso que ele se retirou.
Neto olhou para Mathias, antes estavam ambos olhando para a multidão à frente, Jonatas estava dizendo algumas palavras de agradecimento a todos.
_ Acho que ele ficou frustrado. Acho que o homem não está pronto para manusear um conceito tão poderoso quanto este. Então a tendência natural é negligenciarmos._ disse neto.
Matias completou:
_ Fazemos o melhor que podemos e torcemos para ser o suficiente.
Ambos concordaram com outro silêncio.
Neto se adiantou novamente e perguntou:
_ Você acha mesmo que ele estava falando sério nesses últimos meses?
_ Sobre o quê?
_ Sobre os pássaros.
_Não. Prudêncio era um homem de princípios e conceitos muito bem definidos; sua visão de mundo era quase que absolutamente imutável.
_ Então por que todas aquelas histórias sobre Pássaros?
_Quem vai saber. Talvez ele quisesse fantasiar um pouco sobre a vida; sabe. Romancear algo que fugisse totalmente da rigidez do mundo dele só para variar. Talvez, no final ele estivesse apenas querendo se esconder dos conflitos, das leis, dos litígios. Não sei.
Neto olhou para o chão coberto pela grama baixa; Rebeca tinha tomado a palavra e recitava um poema escrito pelo pai no último mês, era algo envolvendo flores, pássaros e justiça; as três paixões dele.
Neto disse:
_ O direito era a vida dele.
E Mathias completou:
_ Era o caminho que ele usava para encontrar Justiça.
Eles tinham, os três, se reunido várias vezes na ampla varanda de Prudêncio ou em sua biblioteca pessoal de casa para debater e filosofar sobre estes assuntos, mas o tema escapava por entre seus dedos repetidas vezes.
Neto olhou ao redor, o lugar era muito amplo; a grama cobre toda a extensão, alguns jazigos ostentavam as clássicas estátuas dos anjos com suas assas abertas e espadas em punho. A visão lembrou Neto de outra estátua da Justiça que tinha visto certa vez; uma estátua que ao contrário da que estava ali no jazigo de Prudêncio, ela trazia além da venda nos olhos e da espada na mão, também uma balança. Uma clássica representação da dama da justiça.
Havia muitas árvores ladeando o lugar, de fato, na rua ao lado havia um corredor formado pelas árvores, era uma visão muito bucólica.
As pessoas começaram a se dirigir para o jazigo e lançar suas rosas sobre ele.
_ Me pergunto se seria possível um homem, de repente, travar contato com pássaros. _ recomeçou neto.
_ Ora; são animais, é possível domesticá-los talvez.
_ Não. Eu digo da maneira como ele falava.
Ambos riram de modo comedido e se surpreenderam do fato de serem capazes de fazê-lo numa ocasião como aquela.
Mais pessoas lançando as rosas.
Eles começaram a se mover no fluxo da multidão; Neto mantinha os olhos fixos na estátua e pensava consigo tudo o que ela representava e tudo que seu professor havia ensinado.
De repente um som anormal se fez presente, a princípio todos pensaram ser o vento contra as folhas das árvores, mas logo alguns identificaram que se tratava do farfalhar de asas.
Uma revoada de pássaros surgiu em vôo rasante; eram aves de todos os tipos; Neto viu pombos, e pássaros menores numa infinidade absurda.
As aves giraram sobre o cemitério, em seguida mergulharam sobre o jazigo de Prudêncio Moraes, pousaram por toda parte; sobre a estátua, sobre o jazigo, no chão ao redor. Toda parte.
Alguns pássaros traziam pequenas flores nos bicos e incrivelmente depositaram sobre todo o lugar exatamente como as pessoas estavam fazendo; os animaizinhos deixaram as flores; sob os olhares atônitos da multidão de pessoas; alguns gorjeavam suas melodias características, e, rapidamente alçaram vôo novamente indo para longe. Tinham atendido o pedido o amigo.
Quem ainda estava lá e viu essa cena nunca mais esqueceu, muitos, como Mathias e Neto que conheciam a história de Prudêncio, tal como seus familiares, não puderam deixar de pensar que aquilo era a prova definitiva de que ele, de fato, conversava com os pássaros, como tentou dizer várias vezes sem que ninguém o desse crédito.
O pedido de lançar rosas sobre o jazigo não era para as pessoas como os filhos tinham interpretado inicialmente, mas sim para seus pequenos companheiros emplumados.
A multidão ficou quieta, e anestesiada pela beleza do espetáculo que presenciaram, e em seguida a emoção tomou conta de todos de uma forma ainda mais forte, Rebeca chorava muito, tal como outras mulheres e os homens se esforçavam para manter suas emoções presas dentro do peito. Eles se perguntavam por quanto tempo Prudêncio tinha escondido seu dom, teria ele nascido com isso ou uma ação fortuita e inexplicável o tinha atribuído aquela condição. Nunca saberiam, tais dúvidas jamais seriam esclarecidas.
Mas no fundo eles sabiam que o mundo não era mais aquele lugar cujas regras não podiam ser quebradas e que toda aquela rigidez da realidade não passava de uma fina capa; às vezes algumas pessoas conseguiam passar por essa capa e com isso realizavam feitos extraordinários.