Raízes
A hora havia chegado. Percebeu logo ao anoitecer, enquanto comia um ensopado de lebre com temperos fervidos em panela de ferro sob a trempa num fogo de chão. Nos últimos dias sua barriga havia baixado, o ápice abdominal estava abaixo da cicatriz umbilical, sentia-se estranha, algo estava por acontecer. Enfim, há duas semanas atingira os nove meses.
Seu casamento tivera sido prometido desde o nascimento, por seu pai, chefe de uma tribo indígena da região norte do Rio Grande do Sul, a um menino pardo de cabelos escorridos. Seu velho pai, sujeito de bons costumes, fala mansa e tímida, de uns anos para cá tinha o olhar triste, de quem perdeu terras e não tinha mais lugar para viver. A cada dia sentia os costumes indígenas, as tradições que por tempos foram cultivadas, acabando por entre as têmporas, evaporando desnecessariamente, como se nada importasse. Seu olhar triste tinha razão, causalidade. Os brancos haviam invadido seu espaço, trazido doenças, acabado com terras de caças, com rios de pesca. Haviam roubado sua alma, seu espírito.
Suas dores aumentavam. Ela chorava desesperadamente. Sabia que precisava ser forte, estava preparada. A noite era atípica, uma neblina molhada pairava no ar, enxergara pouco mais de um palmo a frente, os lobos da montanha uivavam alto em direção à lua coberta por entre nuvens. A parteira fora chamada, o Pajé comunicado. Estavam no meio da mata, em sua moradia atual, uma aldeia instalada há pouco mais de 80 dias. Na barraca de lona preta um lampião iluminava a escuridão, a taquara há dias estava afiada, a água esquentava na panela de barro sob o fogo de chão.
Eis então o sublime momento, o exato instante em que sua dor imerge e se agrega a uma emoção nunca antes experimentada. Ouve-se um choro de criança, emite-se um grito de alívio da mulher guerreira. Os homens dançam em círculo a fogueira, bebendo algo estranho, cantando alto, num ritual de boas vindas a mais um de seu sangue, um cultivador da tradição, um exímio caçador.
Sabiam que seria homem, o formato triangular da barriga, logo aos cinco meses da gestação, identificara o gênero do futuro pródigo. Ia se chamar Jamil.
A parteira, num único golpe, desprende a criança do útero materno, dá-lhe vida própria e, ainda envolto por uma camada branca de sebo esperneia ao sentir os primeiros contatos de vida própria. A taquara afiada como faca é usada para cortar o cordão umbilical, na altura certa, medida no tórax para facilitar a cicatrização. Se desfaz o último laço físico, agora só resta o emocional. A placenta é retirada e num ritual é enterrada junto à aldeia, onde a criança obterá laços infinitos de amor pela terra, de união e paz. À mãe serve-se um chá quente, forte, amargo. Ela treme, bebe tudo num gole, um manto lhe aquece. Abraça seu filho com todo carinho, deu a luz, ainda jovem, a uma bela criança.
A cultura indígena não pode ser esquecida. Cultivai-vos os diferentes dos desiguais.