UM SONHO DE CRIANÇA= EC

Mentiria se dissesse que me entristeci com a morte de meus avós.

Eu não os conhecia e meu pai tinha cortado relações com eles muitos anos atrás quando resolvera se casar com minha mãe e não com a noiva que eles tinham escolhido..

Na minha casa não se falava neles e o pouco que eu sabia dessa história era o que ouvira indiscretamente nas raras vezes em que meus pais falaram nisso.

Nós éramos pobres. Meu pai trabalhava como sapateiro e lutava muito para sustentar sua família com dignidade, mas nunca nos faltou o essencial.

Devia ter certo ressentimento por passar por tantas dificuldades tendo vindo de família rica, mas, nunca admitiu isso.

Agora, ali estava um escravo, vindo da parte de meu tio para dar a triste notícia. Marido e mulher, meus avós, tinham falecido com poucos dias de diferença

O meu tio pedia a meu pai que fosse até sua fazenda para conversarem sobre a partilha dos bens deixados pelos pais..

Eu acho que Papai até se alegrou com a noticia. Meu avô era muito rico e, mesmo havendo vários herdeiros, por certo receberia uma boa grana.

Eu tinha doze anos, era o mais velho dos filhos homens e por isso Papai me mimava um pouco.

Um pouco só, pois, naquele tempo as crianças eram tratadas com muita rigidez para que não perdessem o “respeito” pelos mais velhos, mas, como dizia, na qualidade de filho preferido fui convidado para fazer a viagem com ele.

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Eu nunca saíra de minha cidade e o convite de Papai me causou enorme prazer para inveja de meus irmãos que, todos queriam ir também, é claro.

Mamãe arrumou nossas malas de roupas, a sacola de lanche e nós saímos bem cedo, a cavalo, pois então esse era quase que o único meio de transporte.

Os troles e outros veículos de tração animal só trafegavam nas boas estradas e a maioria delas eram de más a péssimas.

Já havia sido inaugurada a estrada de ferro, mas só até uma cidade distante da nossa.

Depois de cavalgar o dia todo, chegamos a uma hospedaria onde jantamos, dormimos e no dia seguinte, deixamos o cavalo aos cuidados do dono e só então tomamos o trem que nos levaria até próximo da fazenda do meu tio.

Essa viagem de trem foi a coisa mais emocionante que eu podia imaginar.

A máquina movida a vapor fazia seu barulho característico e a cada poucos minutos apitava para avisar que vinha vindo e que deviam deixar sua linha desimpedida, pois ela era a dona do pedaço e quem invadisse seu território podia dar-se mal.

De tempos em tempos o Chefe passava para conferir as passagens e um quituteiro oferecia, sanduíche de mortadela, refresco e doces variados..

Tomando refresco, mastigando o sanduíche ou o doce eu me debruçava na janela querendo ver melhor, não perder nada da paisagem que se descortinava aos meus curiosos olhos de garoto.

Eram vastas plantações de cana ou de café, mas para mim tudo era novidade.

Chegando à estação mais próxima ainda tivemos que tomar uma charrete para fazer o resto do trajeto, até a fazenda.

Já era noite quando, enfim, chegamos a Casa Grande, sede da fazenda de meu tio.

Meu pai e meu tio ficaram falando da herança e dos negócios até altas horas da noite enquanto eu e os primos com os quais dividi o quarto brincamos de tudo o que se possa imaginar até que, exaustos, acabamos dormindo.

No dia seguinte recebemos a visita de Coronel Felício, um vizinho que estava interessado em comprar a parte de meu pai nas terras herdadas.

O casal e a filha, Maristela.

Eu, até então nunca me interessara por garotas.

Na época, os meninos e as meninas eram criados muito afastados uns das outras. Os pais estavam o tempo todo vigiando com medo que a gente “tirasse um pedaço” da sua inocência.

Mas, não podiam evitar que os instintos aflorassem e que a curiosidade fosse até estimulada com a proibição.

A Maristela mexeu com alguma coisa dentro de mim.

Pela primeira vez na minha vida senti o coração pulsar mais forte e sensações até então desconhecidas me assaltarem.

Eu não conseguia desviar meus olhos dela e percebia que ela também me olhava quando pensava que eu não estava vendo.

As fazendas ficavam muito próximas e quando eu fingia estar catando amoras silvestres perto da cerca, podia ver a janela de sua casa onde ela aparecia por trás da cortina e ficava me espiando.

Até que um dia quando me banhava no rio com alguns meninos de minha idade, percebemos que havia alguém nos espiando atrás de uma árvore.

Estávamos todos nus e, envergonhados, nos enfiamos na água tentando esconder-nos do olhar indiscreto.

Pude ver quando ela se afastava correndo. Era a Maristela!

Depois disso minha paixonite só fez aumentar e quando meu pai avisou que no dia seguinte íamos embora tive vontade de chorar.

Já no trem, a caminho de casa, meu pai surpreendeu-me:

- Arranjei uma noiva para você.

- Uma noiva?!

- É claro que só vai casar-se quando tiver dezoito anos, mas, eu e o Coronel Felício já acertamos tudo. Você casa-se com a Maristela e fica com a fazenda do outro lado do rio...

Não ouvi mais nada.

A Maristela preenchia todos meus pensamentos, todos meus desejos, todos meus sonhos, todos os espaços de minha alma.

Rezei para que o tempo passasse depressa, mas não fui atendido.

Aqueles foram os anos mais longos de minha vida, mas valeu a pena, oh se valeu!

***

Este texto faz parte do Exercício Criativo - No Meu Tempo.

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Maith
Enviado por Maith em 01/03/2010
Código do texto: T2113720