A INADIMPLENTE
Dona Maria, três rebentos ainda pequerruchos a tiracolo, todos jogados aos lençóis do relento. Por sentença de juiz, a ordem de despejo, com o aval de papel de cartório. E, por cima, a gosto do proprietário do velho ovo de imóvel, a demolição da casinha.
Ela, mulher de luta, que trabalha duro desde os primeiros instantes do abrir da aurora até o fechamento do lusco-fusco do dia. Inquilino inadimplente, sem eira nem beira, seu povinho marruá plantava-se na progressista Cidade dos Funcionários, desde obra de uns contados quatro anos atrás.
O bairro, lá, meio que pequeno aburguesou-se, vieram explorações imobiliárias e pobreza tem que levantar os cascos do lugar. Pegar o beco, sim, senhor. Então, de repente, vem-me, pelo vídeo dramático do cotidiano, aquela instigação televisionada: papeleta judicial à mão do senhorio, quiçá mãozinha de sujeito desalmado.
Pelas certezas do conforme, rebocos da casinhola em desalinho, disseminados e deitados no chão, tanto o trator fuçou e remexeu na fragilidade da construção de sapé. Montão de escombros, restos do lar familiar que foi por uns tempos o de Dona Maria. Oh sena de moer qualquer espírito recheado de geleia como o deste um!
Ih, o locador, um aliado da onça? Sim e não – como se diz no baianês – ‘visse’?! Entre o não e o sim, apenas um talvez. Pois camarada propício a tornar-se amigo do inimigo do coração do mundo. Claro que estou a falar do capitalismo.
Pasmem... De cabeça nua à brisa, sol de esguelha no eito dos céus, agora a brasileirinha Dona Maria passou a ser ré, uma fora-da-lei, que litigante mesmo ela nunca foi. Porfiar contra a Lei, ir para cima de um homem que tem farelos e ainda mais com papel de tribunal à mão – eu, hein! – de que jeito?
Uma faxineira de ofício, no mínimo, sucateada pelo ingrato da vida. Mas gente, e de paz, o suor sempre a lavar-lhe o rosto. Seu legítimo litígio? Só o pão dormido de cada dia na boca da filharada miúda. E o sonho de possuir – ainda que de aluguer – um teto onde agasalhar o corpo. No entanto, o implacável da Lei... Bem, o tribunal é que divergia das normas simples de bem viver de Dona Maria. Ela dizia e sempre reforçava, reiterando: “Devo e não nego; pago quando puder.”
Ocorre que o dono dos rebotalhos de casinha, pelos seus modos leoninos, ostentava veneta de classe média da vida. Oxalá um gajo medíocre. Ávido pelo “seu” pedaço de chão e mais uns cento e vinte reais de cobres, metidos no cós. Por isso mandou devastar com trator o teto onde se amoitava a desvalida faxineira. A ele apenas interessaria o solo, aquela minguada nesga de terra. E tudo por conta da exploração imobiliária.
Classe média, o senhorio: dono de certas posses. É possível que um tipo coca-cola com hambúrguer, lá pelos balcões do Iguatemi. E, na certa, unha-de-fome, usurário com palito penso, de viés, no gume dos dentes. Uma miniatura de pessoa, por conta de seu desalmado proceder, criatura do tipo esgalamido. Porém, contudo, no entanto... Montado na excelsa Lei: papeleta de cartório à mão, trator, policiais em pé de guerra e oficial de justiça.
Sem chorar baixinho, todavia, aí a ordem judicial: casinha, não, casebre de Dona Maria desabado, ali, nos aposentos do chão. Sem lengalenga nem choro baixo: DURA LEX. Por causa de que as leis burguesas: SED LEX.
Aí, estampada ar, eis a edição surrealista da tevê. Acreditem, minhas senhoras e senhores, eu vi. Deu na mídia o acontecido doído e contrastante com a necessidade básica de ter-se que habitar um espaço, ainda que debaixo de um quixó. Argamassa emotiva, meio ao chororô pungente de Dona Maria, brasileira cearense e excluída social. Também alarido e abrir de bué dos três meninos. Ai, ai, aqueles todos que nem miudezinhas raquíticas.
Nenhum nordeste de aração, ventinho solidário, ao sopé do acontecido. E o patético aconteceu no real, ‘causo’ que se deu mesmo, bem aqui ao para-brisa do meu olhar. Só o Nordeste grande e regional pela frente, bastante desigual, ainda ancho de latifúndios, perante a falta de esperanças de Dona Maria – a que fora despejada.
Sem veste-calça algum, de seu, sem qualquer amor de amigação, sequer uma companhia de pé de orelha, a faxineira, sem nem casebre para onde ir aconchegar-se. Agora, sozinha, ali, sob o solão, e no olho da rua. Está só e sozinha. Desarmada, a Dona Maria, agora uma lídima brasileiríssima sem-teto.
Afinal, mercê dos quereres da Lei, ela, uma guerreira, posta no rabo do olho dos calores escaldantes. Ela, Dona Maria, a nossa mais novel inadimplente. O que mesmo não sei é quem conseguirá entender ou enxergar o rumo sem remo da pobre mulher-mãe e seus três pardaizinhos implumes.
Fort., 26/02/2010.