O DIRETOR

O DIRETOR

O diretor do Colégio Unidade Escolar Filinto Rêgo era tão austero em suas doutrinas escolásticas, que faria inveja ao melhor dos imitadores de Aristarco, ou a algum Cônego Visitador ainda no início do século XIX. E naquele dia o Antônio Coíra não podia entrar, estava lhe faltando o bolso com o emblema da escola e o primeiro botão da camisa de farda, pois que voltasse a sua casa e os encontrasse, Desse jeito não entra, é coisa de aluno desleixado, se deixo um, não me custa e terei aborrecimentos com muitos, de jeito nenhum, vá, vá, já não é sem tempo, tenho muito que cuidar, ah, e não esqueça, quero conversar com sua mãe.

O diretor ajeitou o colarinho da camisa com gravidade e apuro de quem se prepara para uma sessão fotográfica, verifica a polidez dos sapatos brancos, retira do bolso um lenço, também de cor branca para enxugar o suor da testa com rara solenidade de quem merece importância devida a um cargo superior, não um simples cargo de diretor de colégio, afinal, era odontólogo de muito tempo, aposentado sim, mas com todo o vigor da vida. Exercia a profissão com admiração dos pacientes, tais eram suas habilidades no ofício. Todavia a circunstância da vida o colocara ali, vivendo uma vida misteriosamente dupla. Gostava da cidade interiorana, mas a considerava parva de leitura, com poucos intelectos á sua altura, contava-se as exceções nos dedos das mãos, afora o Meritíssimo Sr. Juiz e o Excelentíssimo Sr. Prefeito que quase sempre estavam fora da cidade, resolvendo problemas na capital. Sobrava aí o Pe. José, mas este não contava, tinha um forte sotaque italiano que impedia uma conversa mais delonga. Preferia a reclusão da própria casa fora dos limites urbanos ou o interior da biblioteca do próprio Colégio. Raramente frequentava os lugares sociais, bares, festas ou clubes, era tudo perca de tempo, alienação cultural, populismo desmesurado. O doutor dentista e diretor de escola, nunca era visto em badalações pela cidade. Homem muito direito e severo com os códigos da virtude, haveria de ser exemplo.

O diretor costumava ficar trabalhando até tarde da noite, como ele mesmo dizia, para “enobrecer a alma e dispersar pensamentos sem utilidades ao conhecimento e saber do espírito”, repetia essa frase sempre que podia como sinal de pensamentos castos de um homem probo ajustado à civilização da sapiência, e na sua retidão erguia a cabeça e saía vitorioso, com a certeza de alguns olhares admirados.

Ao pegar o caminho de volta, Coíra imaginava quão dolorosa e pesada era a mão da sua amada mãezinha, a cada descida que dava, empunhava uma palmatória cada vez mais pesada, a mão inchada soltava-se do braço como manga madura ao cair da mangueira, e uma contagem que espalhava terror por todo o corpo, estremecia feito medo da morte, um, dois, três, quatro, e advertia, Se puxar a mão é pior, ouviu bem, a contagem podia aumentar para quinze. Não, com certeza seria pior que a morte, teria que conviver com a dor e com o castigo de não poder sair de casa durante uma semana inteira, nada de pesca, nada de rua, nada de jogo no campinho de areia, nada de fugir pro riacho às escondidas, nada de nada. Tudo isso por causa de uma briga idiota que se metera com Afonsinho quatro olhos, já no finalzinho da aula de ontem. Poderia ter evitado se não fosse por causa da turma pedindo insistentemente aos gritos e em coro para rachar, RACHA, RACHA, RACHA. Um risco de giz fora feito no chão da calçada, dividindo os dois, um para cada lado, cercados por uma multidão de incentivadores de rinha, Ele cuspiu não sua mãe, Mete o cacete, Quebra ele, e um coro entusiástico em volta se formou, PORRADA, PORRADA, PORRADA. Não teve jeito, foi sopapo pra tudo que é lado.

No final da tarde, já na boquinha da noite, pensou corajosamente em voltar e falar com o diretor, pediria desculpas, mil vezes desculpas, ficaria de joelhos, suplicante, se fosse preciso, diria que nunca mais faria aquilo, nunca mais se meteria em confusão, era promessa de honra, deixasse ele entrar sem o bolso, que o botão ele arranjaria. A mãe não precisava saber de nada, seria um aluno de dar gosto a qualquer professor, bom comportamento, boas notas, boa conduta nos deveres, enfim, poderia ficar de castigo na diretoria sem recreio durante o tempo que fosse preciso para pagar o delito. Pensava a melhor forma de dizer isso ao diretor para comovê-lo, faria aquela cara de choro, olhos cheios de lágrimas, ombros caídos com o peso do mundo, olhos baixos de arrependimento, e não podia esquecer as palavras mágicas, PERDÃO SENHOR DIRETOR, isso funcionou com sua mãe no primeiro quebra-quebra que tivera na Escola, na segunda não deu mais. Sabia que o diretor tinha coração de ferro, não perdoava danação de aluno, era reto demais para voltar a trás, mas era tudo ou nada, não lhe custava tentar, e ainda podia livrar-se de uma boa sova de palmatória. Veio um receio de que ele piorasse o castigo depois que avaliasse sua ficha escolar, mas não estava tão ruim assim, e tomou nova coragem, apressando os passos. Hesitou à frente do colégio que agora, no silêncio vazio, estava à mercê de uma leve sombra, denunciando a chegada da noite, parecia bem maior que de costume. O portão estava aberto, apenas encostado com o ferrolho passado. Sabia que o diretor estava lá dentro sozinho, provavelmente remexendo aquela papelada toda dos alunos, informava-se da vida de cada um deles pelo nome e sobrenome, tinha facilidade em decorar nomes e se orgulhava disso, dizia saber todas as capitais do mundo e se exibia nas aulas de geografia quando algum professor faltava por doença ou necessidade superior, porque assim estava escrito no mural da Escola, MOTIVOS SUPERIORES, mas só valia para os professores, e era sempre ele, o diretor, substituto das aulas de História e Geografia.

O corredor vazio crescia a cada passo, talvez fosse melhor observar primeiro, estudar o melhor momento para entrar, hesitou mais uma vez, olhou para um lado e outro, e se dirigiu para o lado externo do corredor, evitando assim a entrada da porta principal, era uma calçada bem larga, tinha a preferência das meninas que gostavam de conversar debaixo de uma sombra ampla, deixada pela soleira para amenizar o calor causticante das tardes de verão. Ouviu um barulho forte de abrir e fechar de portas de armário, ficou agachado embaixo da janela por alguns segundos, abraçado às pernas, pensou em desistir daquela asneira, só iria piorar as coisas. Ouviu novos barulhos, levantou o corpo para ver e analisar a situação melhor, o diretor estava sentado em sua cadeira preta acolchoada, uma pequena garrafa de bebida e um copo sobre a mesa, a garrafa estava fazia, ele se levantou com dificuldades, esbarrando nas mesas e cadeiras que encontrava pela frente, abriu o armário mais uma vez, tirou uma caixa de papelão da prateleira bem debaixo e a colocou encima da mesa, a garrafa vazia foi para dentro da caixa junto com outras, e uma cheia substituiu a vazia sobre a mesa. Antônio Coira não lembra quanto tempo ficou ali, espionando aquela cena tão estranha quanto insólita, o certo é que, lá pelas tantas da noite, ao sair da diretoria, depois de mais um árduo dia de trabalho, o diretor saiu distribuindo tropeções pela rua, apoiando-se no muro da escola, botou um chapéu preto na cabeça e tomou o rumo das veredas e mariposas. Naquela noite o Antônio não falou com o diretor, mas no dia seguinte, e nos outros, e outros que se seguiram, não foi mais barrado no portão.

Leandro Dumont

22/02/2009.

Leandro Dumont
Enviado por Leandro Dumont em 12/02/2010
Código do texto: T2083035
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