O CAIPORA

O CAIPORA

Naquele dia nós saímos bem cedo rumo à Macambira que ficava depois do Boqueirão. Eram umas seis léguas de distância e o caminho não era muito bom, havia chovido muito no dia anterior, e muitas poças d’águas ainda podiam ser vistas no meio da vereda, as palmeiras e arbustos às margens davam um cheiro gostoso de mato molhado, tudo verdinho que dava gosto, era mesmo uma belezura. A égua Malhada tinha experiência de sobra e nem precisava puxar rédeas, Esse bicho é mesmo inteligente que nem gente, posso inté sortar ela que ela vai sozinha, nem sei por que chamo ela de bicho, se sou eu que tô cum chicote na mão, refletiu Cordeiro, enfiando a mão no bolso e puxando um saco de fumo com algumas papeletas brancas, e com a ajuda da ponta de uma faca fez dois cigarros, Quer um, ofereceu com a mão estendida, Não, respondi me deitando no lastro da carroça para apreciar melhor o topo das palmeiras, imaginava como elas podiam crescer tanto, pareciam eternas, indestrutíveis soldados do rei, perfilados na beira da estrada, quis saber a idade delas, Quantos anos tem essas palmeiras, Não sei, quando eu nasci todas ela já tavam aqui, meu pai me levava pro riacho, pra pescar na enchente, lá na ponte veia de madeira, e essas palmeira já tavam aqui, muito veia, veia mermo, menos as de ôio queimado, e apontou para cima de uma palmeira velha queimada, cuspiu para o lado, Que bufa, Maiada, Maiadinha, Queridinha hi hi hi, pigarreou, e continuou balançando as pernas dependuradas, deixando um mistério no ar, só então me dei conta que algumas palmeiras estavam com o topo queimado. Andamos um bocado, mas ele não toucou mais no assunto das palmeiras, soltava baforadas de fumaça uma atrás da outra, até que não aguentei mais de curiosidade e perguntei sobre as palmeiras de olhos queimados, ele olhou para cima, prendeu as rédeas na grade esquerda da carroça, e jogou fora, com um peteleco, o que restara do cigarro, ajeitou-se, sentando de lado, tirou o chapéu de couro cru da cabeça, coçou o cocuruto e começou a contar sua história.

Assunte. Foi assim, quem viu mermo mermo a cara dele foi meu vô, Zé Ontôi Cordeiro, Deus o guarde, que contou pro meu pai, que contou pra mim. Por essas banda só tinha mata cerrada, muita caça boa, peba de quatro quilo se pegava de jequi e coité, raposa maior que cachorro de caça, meu pai vinha cum ele, cum pai dele, meu vô, mode fazer coivara pra plantar umas linha de feijão, e depois catar babaçu mode vender na fábrica de óleo, mais das vez vinha caçar. Foi nessas andança de mato à dentro que chegando à boca da noite, os cachorro farejaram rastro de jaguatirica e ficaram tudo oiriçado, um latido danado, correram rasgando moita de unha-de-gato e mata-pasto das brenha, feito doido, coisa dos inferno, não dava mermo pra’companhar, o melhor era esperar os bichos de vorta. Lá pelas tantas, a noite que ameaçava cair, caiu de vez, e cum ela vinha nuvem de chuva, chuvinha abençoada. Fizeram uma cabana de paia de coqueiro bem aqui perto, e apontou com o queixo, pra se proteger mode a chuva, era uma ventania danisca de forte, de envergar coqueiro, daí meu vô resorveu ir atrás dos cachorro, se chove, moia tudo, alaga terreno, apaga rastro, e os bicho perde o faro e as pista, é capaz de se perder na mata brava, aí só Deus pra dar jeito neles, já bolei por essas mata dia inteirinho inteirinho, e oia que sou macaco criado, foi sufoco pra nunca mais. Pois bem, antes de vô sair, deixou recado pro meu pai não sair de dentro do abrigo, mode os coriscos que caiam, ficasse ele bem entocado, mas se caísse um muito perto, podia bater pé na bunda, correr sem oiar pra trás, porque era sinal que o Caipora tava ali por perto, o bicho aproveitava para acender o seu cigarro nas queimada das palmeira e se achasse alguém por perto, metia o sarrafo até largar o couro das costa, o nêgo era bicho ruim, já tinha pegado muito caçador por ali. Meu pai ficou no abrigo de ôio nos corisco. A ventania não parava, meu avô não vortava, e os bicho também não. Já era noite truva, ia ser difícil vortar no breu do escuro, duas horas depois a chuva começa a cair, primeiro aqueles pingo fino, depois ela cai cum tudo, pesada mermo. Dois coriscos caíram por detrás do abrigo a uns cem metro, mas meu pai disse que não viu nenhuma palmeira queimando, mermo assim quis correr, as perna não obedeceram, ficou bem quietinho no canto, assuntando, assuntando e matando mutuca da disgrama, todo picado, moiado pela chuva e pelo mijo, não sabia se era pelo frio ou pelo medo, mas tremia que só vara verde, hi hi hi.

O contador de histórias fez uma pausa para cuspir, verificou se as rédeas estavam bem presas na grade e continuou, Muito tempo depois é que meu vô pareceu que nem fantasma na escuridão, ôio estufado, cachorro cambaleando de banda, contou que tinha se encontrado com o Caipora, o bicho ruim tava dando uma sova nos cachorro, um já tava mortinho quando ele chegou, mas o outro inda tava vivo, bicho muito bom de caça mermo, lutando feito onça, o veio, vendo aquela cena não contou conversa, partiu pra riba com seu facão, riscava o ar que nem corisco, mas o bicho não parava quieto, pulava daqui, pulava dali, sem parar, se escondia por detrás das moitas e quando reaparecia era uma chicotada nos lombos de fazer cabra urinar, só de pensar fico arrupiado. A briga durou coisa pra mais de uma hora, foi quando o coisa ruim entrou pela mata dando gargaiada e sortando fumaça pelas venta. Eles ficaram acordado a noite toda de plantão, assuntando, pra ver se o Caipora vortava, mas que nada, o bicho sumiu de vez. Quando amãieceu o dia, a chuva parou, meu pai ficou admirado, meu vô tava inda todo moiado, de pé, bem na frente da cabana, camisa rasgada, as costas riscadas que parecia taio de carne pra sargar, trazia um dos cachorro nos braço, o bicho sangrava tanto que morreu no dia seguinte. Muita gente duvidou do meu vô, disseram que foi a jaguatirica, mas que jaguatirica é essa que nunca mais apareceu, e lutou contra dois cachorro e um homem em mata aberta, podendo fugir. Bicho bravo só avança em homem quanta fica acuado, sem saída. Além do mais, jaguatirica não sorri do caçador e nem sorta fumaça pelas ventas.

Cordeiro voltou para sua posição inicial de carroceiro, acendeu o outro cigarro, colocou de volta na cabeça seu chapéu, balançou as pernas e prosseguiu calado, com outro mistério.

Leandro Dumont

17/02/2009.

Leandro Dumont
Enviado por Leandro Dumont em 11/02/2010
Código do texto: T2081921
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