CABARÉ DO BREGA

CABARÉ DO BREGA

Quando eu conheci o seu Brasil, ele andava em uma bicicleta velha, dessas que tem uma campainha e um quadro de puro ferro e pesa um bocado, ia descendo à Rua Benedito Rêgo como quem vai pra casa dos onofres. Era nela que ele fazia suas visitas rotineiras para tirar as medidas dos seus clientes mais exigentes. Nos finais de semana sumia para ninguém dar conta e só aparecia na boquinha da noite. Homem franzino, de poucas letras, perto dos seus cinqüenta e cinco anos, olhos amarelos e esbugalhados, rosto caucasiano mais puxado para os africanos, aparentava ser mais velho que a idade, tinha quatro filhos, uma filha e uma esposa, dona Luzia, um pouco mais nova, mulher dedicada aos afazeres domésticos e ainda lavava e passava para fora. Seu Brasil dedicara toda a sua vida à educação da prole, e tinha orgulho de dizer que era pobre, mas que educara muito bem os filhos. Quando o mais velho estava terminando o curso de medicina e precisou de um livro de anatomia, seu Brasil não contou conversa, vendeu a bicicleta e comprou o livro, foi um dia difícil, outro precisava de sapatos, dobravam-se as costuras, trabalhava sem parar, entrava pela madrugada cosendo até a exaustão para conseguir o dinheiro, e não tinha quem reclamasse, era alfaiate de primeira mão, fazia terno até para o prefeito da cidade. Na festa de formatura de segundo grau da filha, ele não pôde ir, fora assolado por uma febre de quase quarenta graus, no dia seguinte o médico lhe recomendara repouso absoluto até que ficasse curado da pneumonia, mas seu Brasil não podia parar. Quem é que bota a comida na mesa seu doutor, O senhor tem que diminuir o ritmo, desse jeito vai acabar se matando, aconselhou o médico, Só peço a Deus que me deixe ver os filhos tudo formado, feito o doutor, Pois diminua o trabalho senão não chega lá, insistiu o doutor já meio impaciente, Arre, doutor, eu tenho é meia dúzia de bocas pra dar de comer, Que tal se esses meninos arrumassem um trabalho, Ah não, filho meu não pega no pesado, quero só que eles estudem e no futuro podem até me ajudar, quem sabe me dão condição melhor, doutor, a Deus o futuro pertence, veja o caso do Filinto Rocha que andava vendendo fumo de corda pra cima e pra baixo em tudo que é de feira, levando peso no lombo, hoje não trabalha mais é só alegria, passa o dia todo de papo pro ar, dizem até que arrumou um “cacho” bem mais novo que ele, os filhos tudo formado, tudo doutor advogado, só o mais novo é que não quis nada com a vida, vive por aí mendigando um copo de “birita” quando não arruma dinheiro com os irmãos, já disse, filho meu é pros estudos.

A casa de seu Brasil ficava à Rua Benedito Rêgo, do lado esquerdo da construção uma rachadura enorme, e duas grossas ripas seguravam a parede para que ela não caísse. Mas isso não incomodava em nada seus moradores, a ordem era estudar e estudar. Chegou a hora que todos os filhos tiveram que ir morar na capital, uma casa fora alugada, não dava mais para manter as despesas com passagens e alimentação todos os dias. Seu Brasil ficou com a mulher praticamente a pão e água, a conta do seu Zequinha cresceu astronomicamente, Mas o que é isso homem de Deus, isso é um roubo, dizia Seu Brasil espantado com o tamanho da conta, Roubo não Brasil, desse jeito fico até ofendido, vê lá o favor que faço homem, e vê se não enfraquece a amizade, dizia o taberneiro se fazendo ofendido. O alfaiate trabalhava dobrado dia e noite, nessa época perdeu peso e teve que ir várias vezes ao médico, a mulher tivera que ficar como enfermeira em casa mesmo, porque Seu Brasil, de teimosia, não queria ficar internado no Hospital. O tratamento só durou uma semana e o paciente já estava na “labuta” pedalando sua máquina de costura com os pés inchados de tanto tempo dependurados.

Foi assim que o Seu Brasil formou todos os seus filhos, um médico, um engenheiro elétrico e três professores. O Dr. Renato assumiu a diretoria do Hospital da cidade, o professor Luiz a diretoria da Unidade Escolar Filinto Rêgo onde seus dois outros irmãos ministravam aulas. O engenheiro foi trabalhar na companhia de energia elétrica do Estado. A casa velha fora vendida e a família desfrutava agora de uma bela e confortável casa de quatro quartos, duas salas amplas, dois banheiros, garagem e uma bela área com jardim na frente, a casa ficava mais ao centro da cidade, para facilitar as caminhadas da mãe que agora estava se sentindo cada vez mais solitária. Os filhos já não paravam mais em casa, os dois mais velhos casaram e só apareciam nos finais de semana para visitar os pais. Seu Brasil continuava com seu mistério, vez ou outra sumia para retornar no finalzinho da tarde, os sumiços ficaram mais frequentes e os filhos, que antes não faziam conta desses desaparecimentos, começaram a questionar o pai, este tratou de se defender, alegando direitos de privacidade, afinal tudo que fizera até hoje fora para ajudar a família, trabalhava feito condenado, não ficava com nada. Os filhos acudiram imediatamente, alegando que o pai não precisava mais trabalhar, deixasse esses cliente chatos, Se quiserem mesmo seus serviços que venham tirar suas medidas aqui. O pai retrucou, mas reconheceu as ponderações do filho, mesmo assim argumentou, Mas tem um cliente que não posso deixar de atender, e explicou que o freguês era velho de mais para se deslocar até ele, e seria uma judiação deixar de atender um pedido seu, afinal o dinheiro não era tudo e só porque agora estava bem não ia deixar de trabalhar.

Duas semanas depois um novo sumiço que duraria uma eternidade, Seu Brasil não voltou ao final da tarde e nem ao final da noite, a família ficou preocupada, saíram à procura do alfaiate pela cidade, ninguém dava notícia de Seu Brasil, a polícia fora acionada, era impossível que uma cidade de apenas doze mil habitantes pudesse esconder alguém por mais de dois dias. A polícia não se interessou muito pelo caso, “afinal de contas o homem era perfeito de suas faculdades mentais, tinha livre-arbítrio para ir e vir de onde bem quisesse, vai ver ele resolvera simplesmente ir embora”, mesmo assim o delegado advertiu os guardas para que ficassem alerta, caso soubessem de alguma informação que levasse ao paradeiro do desaparecido.

Dois meses se foram e dona Luzia adoecera de tanta tristeza, não se alimentava direito, ficara com o corpo fraco e fora acometida de doença, não me lembro com precisão, mas acho que tinha alguma coisa a ver com pneumonia fibrilosa que evoluíra para uma tuberculose, o próprio filho cuidara da mãe, mas a cada dia que passava ela ficava mais e mais fraca, como dona Luiza mesma dizia ao filho médico, não tinha mais muitos motivos para viver, não comia e jogava fora os medicamentos às escondidas, não aceitou ser transferida para a capital, mesmo assim, com muita insistência, o filho a colocara dentro de uma ambulância, mas ela morreu antes de chegar ao Hospital.

Alguns dias depois, em uma noite qualquer, a Maria Preta, lá do Cabaré do Brega, saía do seu quarto enrolada em um lençol aos gritos, pedindo por socorro, ACUDAM pelo amor de Deus, ele tá morrendo. A polícia chegou algumas horas depois para tomar nota do caso, o corpo nu estava estendido na cama com os braços abertos, a família fora comunicada sobre o ocorrido, mas ninguém quis assumir a responsabilidade pelo defunto, os filhos disseram que ele podia ser enterrado por lá mesmo, e não fizeram conta do enterro. Seu Brasil fora enterrado dois dias depois em um cemitério qualquer pela Maria Preta e as meninas do Cabaré do Brega.

Leandro Dumont

09/02/2009.

Leandro Dumont
Enviado por Leandro Dumont em 10/02/2010
Código do texto: T2079370
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