JIMMY, O ARGENTINO

A figura eslava ou ariana do rapaz nunca mais se desentranhou das minhas retinas. Jimmy, ou Jim? Ou quem? Um seria o mesmo que o outro? A dúvida – sobretudo, a dúvida – contribui para que se tente elucidar o andamento esotérico das peças do xadrez.

Em outubro/novembro de 1973, puseram-me recluso numa cela da PF, em Fortaleza, sob a acusação de ser eu comunista, um “subversivo”, consoante o jargão da época. Não era bem isto, quando muito um romântico, pendente para o socialismo. O certo foi que, no jogo das classificações subjetivas, acabei vendo o sol virar um quadrado. Sinal daqueles “tempos de chumbo”.

Mas, preso político, ao que me tocou no xilindró, também gozava de “privilégios”. Um destes, por exemplo: ficar-se numa solitária, só de cuecas, para não tentar o suicídio. E, tratando-se de solitária, sem companhia, claro. Talvez para não contaminar outros encarcerados comuns com as ideias vermelhas, oriundas não se sabe se de longínquas paisagens extraterrestres.

Por trás da Sé, no velho casarão número 4, da Pereira Filgueiras, lado dos fundos do funesto ex-labirinto de celas, corre, até hoje, banzeiro e apertado, o fétido riacho Pajeú. A minha masmorra, permanentemente com o teto apetrechado de forte jorro gotejante, situava-se num recanto lindo e bucólico, junto ao histórico córrego, próximo do forte de Nossa Senhora da Assunção, e lá dormita sempre sombreado por mangueiras centenárias. Meu calabouço dava de porta para outra cela vaga, bem maior, ao sopé de uma escadaria. Aí, defronte, ao pé da escada que acessava para o labirinto da repressão, cerca de uma dúzia de metros de onde eu permanecia, a mofar, há semanas, três jovens estranhos tornaram-se os novos inquilinos do cubículo vazio. De permeio, portanto, entre mim e os novatos, um espaço sem cobertura dividia os nossos “confortáveis” aposentos.

Já pelo que pude colher, dando de mão da mímica e dos sussurrados monossílabos, um dos moços, com jeito de liderança, chamava-se Vicente. Uruguaio, ele. Ex-marinheiro, ex-integrante do grupo ‘Tupamaros’, agora metido na lapa do ‘underground’. E sabe-se lá em que modelo de encrencas, pois virara ‘hippie’. Outro habitante da cela fronteiriça, neurastênico, sempre irritadíssimo, nunca trocou palavra nem gesto algum comigo. Pareceu-me viciado, pois deveras agressivo. Esmurrava as grades e, amarrando peças de roupa, catava as pontas de cigarro, jogadas no pátio, ao seu alcance. Era peruano, já mo dissera, uma vez, o Vicente. Acusado de, na Marítima, tentar currar uma sua patrícia, que, por sinal, tempos depois, conheci lá no frege da permanência da repressão. A tentativa frustrada da curra ocasionara a transferência dos quatro estrangeiros.

Sobre o terceiro moço, que é a razão mesma destas garatujas, quero dar-lhe maior enfoque. Tratava-se do Jimmy, talvez Jim, não optei pela grafia, já que transmitiu oralmente o seu nome, e à distância, quando me estava indo embora. Ele se declarava argentino, estudante de Sociologia, na Universidade de Buenos Aires. Segundo o próprio, estava encetando uma “experiência ‘hippie’”, por outros chãos da América Latina. Como já registrei, supra, ele, ‘cara’ do tipo ariano, ou eslavo; não sei classificar as raças. Mas era loiro, alto, atlético e ponderado. ‘Pintoso’, o sujeito, tal a gíria nos registra. E de olhos azuis, mesmo visto à distância. Muito tranquilo, aparentemente. Dono de formidável educação formal. Não seria ele um fugitivo do arbítrio reinante, à época, na Argentina? Ficam as mães da ‘Plaza de Mayo’ de sobreaviso, portanto. E, por favor, deem-me noticia do Jimmy. Como e onde andará o Jimmy*?

Ao espalhar para o Vicente que, finalmente, eu iria ter “alta” daquela pocilga, o Jimmy me fez festa e um pedido solene: comunicar à namorada dele, na Aldeota, que agora ele estava era na PF, e não mais na Polícia Marítima, de onde fora transferido, junto com o Vicente e o casal peruano. Claro! Com o maior prazer, cumpri com o trato e ainda voltei lá, dia seguinte, com alguns bagulhos para os três, incluindo aí os cigarros. Só não posso é afirmar que o carcereiro pernambucano tenha levado as comprinhas ao destino certo.

O prefixo do telefone, dito pelo Jimmy, eu me lembro bem, ainda, era o 224; portanto, sem dúvida, o endereço da namorada ficava na Aldeota. Nada pus no papel; esqueci do resto, após a missão prometida e cumprida. Como saíra da gaiola ali pelas 18h, liguei logo, em seguida, lá de um orelhão, na praça em frente à Catedral. As compras só foram feitas e levadas no dia seguinte. Assim, disquei, à boquinha da noite. Dei ciência à jovem do que sabia. Ela afirmou que, àquela mesma tarde, a mãe do Jimmy discara de Buenos Aires. Chorava aos berros. Além do lado emocional, aos pandarecos, o espanhol argentino da mulher era intragável, o que dificultou o papo entre as duas interlocutoras.

Correu o tempo, volta no trenó dos meses. Mais de ano haja decorrido. Um dia, soube que um meu cunhado havia “adotado” um menino grande. Pegara um gajo, meio tantã da cuca, muito aéreo, na Mister Hull, avenida da saída norte de Fortaleza. O sujeitão, pelo que me informaram, tinha todos os traços do que conheci na cadeia. Coincidência, ele atendia pela mesma graça, nome que, por aqui, não é comum. Jimmy é nome de gringo, e gringo não dá bobeira de ficar lelé pelas vias públicas. Então, pensei, seria o Jimmy argentino?

Minha irmã e outras cabeças da família diziam sempre que o desconhecido era esquisito e arredio. Vivia amoitado no quarto, lendo e ouvindo noticiários pelo rádio e pela tevê. Quis decifrar o mistério, fui à casa da minha irmã. Deus a tenha, que já se mudou para o andar de cima. Fui a fim de parlamentar com o estranho, tirá-lo do breu do anonimato. Mas quem o viu querer ser visto? Amoitou-se mais ainda no quarto, enquanto visita lá permaneci: o dito ficou pelo não dito. O Jimmy estabeleceu-se na retranca, alegou qualquer coisa, pretextou e não botou o nariz de fora.

Até agora pincelei digressões, quiçá extemporâneas. O alinhavo, no entanto, é para lhes anunciar o pior: sem confirmação do infausto acontecido, léguas decorridas sem que saiba precisar o espaço, Jimmy, ou Jim, agora estaria morto. Botara-se de amor com uma amiga das irmãs do meu cunhado. E foi dar com as costas ao interior, na fazenda da nova namorada. De lá, arrastaram-no preso, sem que tivesse feito danação alguma. Depois, sem que a imprensa sequer registrasse a triste notícia, vinda à baila só às bocas miúdas.

Tais considerações, sob o epíteto de causo, objetivam tão-somente resgatar os rumos que tomou o estudante portenho, pois, com certeza, o tantã que meu cunhado “adotara”, por alguns tempos, é o mesmo Jimmy dos porões nojentos, lá à beira do infecto riacho Pajeú, no centro da Capital cearense. E faço fuzuê, aqui, em declarar: este causo é isento totalmente de quaisquer pitadas de revanchismo contra os “anos de chumbo”; tanto os do Brasil, quanto os infelizes dias que os chilenos, argentinos e uruguaios tiveram que engolir, ‘manu militari’.

Este texto, de feitura simples e modesta, destina-se ao olhar humanitário e sobremodo insuspeito da Anistia Internacional. Vá-se ver, quem sabe, o Jimmy, ou Jim, até poderá ser um dos filhos mortos e/ou desaparecidos daquelas inúmeras e amarguradas “madres de La Plaza de Mayo’.

Fort., 04/02/2010.

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(*) Por meio da boca de parentes, bocas oficiosas, portanto, bem tempos depois, soube-se que, indo para certo interior cearense, casa de uma namorada que arranjara, o Jimmy foi capturado pela PF e teria sido morto, sob tortura.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 04/02/2010
Reeditado em 04/02/2010
Código do texto: T2069144
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