O Sr. e o Dr.
Ao ser levado a presença daquele Sr de seus maturados 84 anos, estava na verdade indo rever um bom pedaço de minha infância. Afinal aquele homem de baixa estatura, tórax roliço e finas pernas de passarinho era figura muito frequente nas ruas mais movimentadas de minha terra ha uns 20 anos.
Vestido com um jaleco branco sentava com boa postura em sua “motoquinha”, percorria toda cidade com seu jeito lépido.
Mas agora ele se encontrava muitos anos à frente daqueles dias; e já não mais conservara sua autonomia para o ir e vir a toda parte. Pior ainda, naquele momento sofria com a recuperação de uma fratura no fêmur, ocorrida após uma queda dentro de sua própria casa. _Quão dura é a realidade do ancião que de andar dentro do próprio lar, pode quebrar-se ao chão, isso quando não se quebra de pé, sem mais nem menos, indo apenas posteriormente ao solo, ao que chamam de fratura espontânea. Mas retornemos ao nosso “continho”.
Dia após dia, sessão após sessão, meu novo amigo ancião, recuperava sua capacidade para as atividades de locomoção, até atingir o ponto de dar os novos primeiros passos. _Digo novos, pois os primeiros verdadeiros são dados na tenra infância, quando nossos corpos, constituídos daquelas carnes parecidas com borracha de apagar lápis, não sofrem com as quedas, que significam nada, senão umas desventuras mínimas, próprias daquele aprendizado.
E foi justamente após os tais novos primeiros passos, que ocorreu a situação que merece agora ser narrada. _É que, quando envelhecemos e passamos para guarda dos nossos descendentes, a coisa toda toma contornos bem engraçados.
Meu amigo ha muito ostentava uma fama de sujeito levado, manhoso, teimoso, e especulativo, o que eram até certo ponto verdades. No entanto, quando a recomendação fora para que o homem, munido de um andador, e com uma acompanhante ao lado, fizesse pequenas caminhadas no interior da sua casa, logo veio o mal falado e em tom confidencial: _Dr, fale com ele, pois ele está terrível, não quer andar nada, esta preguiçoso que só vendo.
Com bom humor cumpri o mandado dizendo: _O senhor precisa caminhar, ainda que por cinco minutinhos a cada período, isso fortalecerá suas pernas, os músculos e os ossos.
Ele me olhou atento, concordou com uma inclinação de cabeça, e um levantamento do ângulo de uma sobrancelha, de maneira que poucos sabem usar tal expressão como sinal de concordância.
Na sessão seguinte nova queixa: _Dr, ele esta impossível, vai da sala ao banheiro desacompanhado, em tempo de sofrer uma queda, mas ele é mesmo rebelado, não espera por ninguém. Converse com ele Dr, ao senhor ele irá ouvir.
Meu serviço dessa vez foi mais sujo, me vali do terror, mas sem perder o bom humor: _Olha, o senhor não deve andar desacompanhado; eu disse, _para evitar um acidente, um outro tombo pode deixá-lo complicado. E com ele a olhar-me conclui: _ Seja lá, qual for o caso, de incêndio a urgência de banheiro, só ande se acompanhado.
Ele não sorriu como eu esperava, mas com a cabeça inclinada para o lado e o ângulo da sobrancelha levantado, pareceu-me ter concordado.
Mas não vá pensando que acabou aí o caso, veio nova sessão, novo recado: _Dr, eu preciso falar novamente com o Sr, é que o seu paciente está muito acomodado, ele agora só quer ficar deitado, toma café e vai para o sofá, de onde não sai nem com reza brava. Fale com ele, Doutor.
Temendo entrar numa difícil rotina de sermões ao ancião, tratei de convocar todos à sala, para por logo um fim aquela questão. Fui catedrático na exposição da sentença do réu, que naquela altura já parecia um réu pagão: _O Sr precisa andar, mas só acompanhado, e esse negócio de ficar o tempo todo deitado, pode lhe resultar em um pulmão infeccionado, portanto, tome cuidado.
Com todos em redor e o pobre no centro sentado, dessa vez ele só me olhava, acho que já se sentia por demais sentenciado. Seus inquisidores, não contentes, fizeram questão de tornar o terror dobrado e disseram: _Dr, se ele fizer algo errado, nós ligaremos para o senhor.
Eu já não podia mais compactuar com aquele engessamento generalizado do pobre coitado. Então, com expressão séria, voz firme e olhar vidrado, disparei: _Isso, me liguem, me liguem que chamarei meus capangas e eles darão um jeito nesse danado.
Ele novamente não riu, tampouco inclinou a cabeça para o lado, em contraposição seus inquisidores gargalhavam.
Pois é, se toda brincadeira tem mesmo seu fundo de verdade, meu novo amigo ancião continuará recebendo sermão, por ficar de pé, deitado e certamente quando sentado.