SEU ANTÔNIO NÉRI

Emergi da fase elementar e obscura da meninez olhando minha personagem a ir e vir, embalada de discrição, como se fosse bicho dos pastos do Camará. Veio de muito longe, não se calcula quando, também sem os rumos certos do onde.

Lá, no sitio, o homem aportara ainda novo. Arriara maca de matalotagem, no chão serrano, requereu a meu pai um serviço e lugar para pôr uma rede, ganhou anexo de quartinho, com direitos a boia, na hora precisa. E plantou-se tal firme que só pé de mandacaru fincado por entre locas de lejedo.

Não arredou mais as pernas do lugar: terra minha natal, maciço bom de serra e água corrente. Quedou-se, de corpo firme; deixou-se ficar onde dera de proa, como quinhão do gadinho de peões ali quase inexistente. Porque meu pai nunca fora de meter-se com muitas crias serviçais, exceto o seu povinho familiar, prole meio avantajada de, por aí, uns dez.

O velho meu pai programou-se – isto, sim, para pintá-lo com justeza – não para ser um tangerino de rebanhos, mas para o bicho homem lavrador. Mão de seda no plantio do arroz e do bananeiral. Além de enterrar no eito outros pés de manga, milho, feijão, fava e jerimum, sim senhor. Cana-de-açúcar, também, arremedo de monocultura. Roceiro e lavrador, lá isto ele exercitava na maior maciez, com uma quermesse de gosto nas faces. Semear e roçar a terra foram o seu grande feitio; estilo lá dele, meu pai, até o velho largar-se dos adjuntos braçais e passar tudo nos cobres, ali antes da seca ruim de 1958.

Mas, retomando o pé de Seu Antônio Néri, que muitas vezes a gente dizia "Neres", o homem deu de costado nos matos já finos do Camará, e lá vai, e lá se vai, deve ter pensado com os seus botões: “– Ora, gente boa é aqui, onde se faz mutirão no prato e na enxada.” Então aterrissou, montou guarita nos traseiros, sentou definitivo assento, virando cifra da nossa fauna mixuruca.

Bastante eu apreciava, mais tarde, eram as falas do forasteiro, que mais parecia um aderente nosso, ele todo trajado a rigor no seu jeitão mansinho de boi da família: “– Até amenhã, Seu Ciço, se Deus quiser.” E dito e feito. De novo, dia seguinte, volvia o agregado, já feito um parente torto. Voltava bem no pontual do “de-comer”, para o almoço e o jantar, até a horinha do serão noturno. Expandia-se mais à beira da janta. Comentava sobre o inverno e arriscava palpites no jogo do bicho: “– Se num der o carralo, vai dar a raca ou o parrão.”

Depois de ouvir a prosa de feriadão de meu pai, ao final do expediente da boquinha da noite, a noite maior penetra nas estrelas, chega o luar das nove e meia, Seu Antônio Néri marca ponto de saída: “– Pra mode a gente acordar mais cedo, boa noite e até amenhã, Seu Ciço, se Deus quiser.” E Deus sempre queria, porque no sol seguinte o sertanejo voltava. Cacoete lá dele, talvez crença por convicção, virara um refrãozinho o dito sempre igual, lavrado em português gostoso, ensopado de fé cristã, algo assim verde-amarelado de nordestinismo.

Com cismas do diabo, não costumava nunca tocar em assuntos de sua origem nem de sua parentalha, esta sempre mantida longe dos roçados de conversa. Evitava meter a colher da língua no seu prato de canja da família. E se não tivesse uma família, para contar-lhe a história? O diacho é que todos nascem de uma família. E lá era aquele pinto de chocadeira, claro que não seria! Fosse alguém provocar o tema, e o herói destas linhas virava logo esquina de ponta: fazia-se de desentendido. E fugia fácil do debate: coisa e tal, ele negaceava os quartos de banda, arribava as cadeiras da canoa da prosa.

Disciplinado de modos, nunca o flagrei pesaroso, apesar das saudades que o deviam corroer por dentro. Como não aparentava ódio nem rancor, mas o silêncio na sua cal do rosto, dir-se-ia ser um sujeito até feliz. Maneiroso, não bebia cachaça. Raras vezes, na bodega, eu o vi a tomar uma dose de genebra. E, pois, genebra não é bebida nobre? Também, sequer fumava com assiduidade. Só um ou outro cigarrinho de palha Seu Antônio Néri pitava. De sua boca, a muito custo, soube-se depois, apenas, já pelo que de pouquinho depunha nos serões da conversa rala, que viera de Pedra Branca, sertão central do Ceará. O restante da vidinha do homem – coitado, uma alma tão boa – era tudo enigma, pois lacônico e discreto ele mesmo estava ali.

Os mistérios dele teriam sido gestão de casa, bolinação nas filhas fêmeas, tiros no cocuruto de algum cabra, briga de morte feita ou coisa de cornagem botada pela mulher? Mistério grosso, com casco de tatu como porta do silêncio. Até hoje, tempo modernoso, quando os hábitos matutos bastante já se metamorfosearam, nos confins do sertão, capiau existe no mato que se pela só em pensar nas ideias de chifraria, nos dias atuais lecionadas nas novelas da tevê. Imaginem o preconceito e a pudicícia de Seu Antônio Néri, pedaço de quarenta ou cinquenta anos atrás. Àquelas épocas, para qualquer sertanejo, coisa de chifre não vale nem pensar!

Fato é que, menino, coisa miúda de ainda cobrir com um chapéu, eu gostava deveras e demais do pedra-branquense, sujeito paternal, religiosamente homem bom e respeitador. Unanimidade. E jamais se o podia, em público, notar com mau humor, riso desbotado nos dentes ou com um peba nas bochechas. Na solidão, quem sabe, talvez chorasse com seu lençol. Mas também ele me bajulava nos agrados, desmontava-se em mimos, com dentes brancos e educados. “Meu bichiiim”, seu tratamento usual.

Certa vez..., a coisa aconteceu anos e anos depois. Indo um pessoal serrano em andanças de romaria à hoje Basílica de Canindé, eu já taludo e sem nem mais me lembrar daquele ermitão do Camará, arranchado no bem-bom de Fortaleza, lá, junto com outros romeiros de São Francisco, pesquisaram papo de leva-e-traz, descobriu-se, enfim, o segredo da vidinha do homem: o fiel e bom camponês, sertanejo de pele curtida pelo sol, com finura de educação, fora passado para trás, corneado, sim. E tivera filhos, lindeza de filhas fêmeas, todas bem torneadas e já casadas, sem um caso sequer de amigação na prole abandonada, segundo a reza de falaço do grupo de romeiros da distante Pedra Branca.

Coitado do Seu Antônio Néri. Foi, à sua época, mais uma vítima de si mesmo: o grande preconceito contra a cornagem. Como o Antônio Conselheiro, aquele gajo da “Guerra de Canudos”, que, levando galhas, ali em Quixeramobim, danou-se no oco do mundo a cometer rezas e fazer revolução, na Bahia. Agora, imaginarmos que, no Ceará dos dias em curso, até anda em alta uma confraria de chifrudos, ou guampudos – tipo de associação ou sindicato –, tendo o cantor e compositor Falcão como um dos seus membros honorários! Ó costumes! Pensem na virada do comportamento humano.

Com o opróbrio dos cornos, o pobre sertanejo arrancou-se do seu torrão, grávido de pejo, pejo pesado por motivo do acanhamento. Mas não matou ninguém e nem morreu, como soia ocorrer nas léguas de ignorância dos sertões nordestinos: ele se escafedeu, inovando a instrução moderna, dando o abandono a seus afins, crianças assinzinhas, todas elas bichinhos miúdos.

Dentuça ebúrnea, boa de arrancar tampa de cerveja, quase sempre a barba por fazer; mediano, mais para alto, corpo meio atlético e paciente que nem boi eunuco; não sei se resignado, que nunca o fotografei por dentro. Mas, exibindo no rosto maquilagem de conformação, assim é que agora me lembra a cara antiga, boa e simpática de Seu Antônio Néri, antes de ele anoitecer no tempo. Pois soube depois, por notícias de bocas serranas, que, ao embarcar desta para a melhor, estava que era um caco de pessoa.

Cultivou tanto a bondade de vigário velho, mesmo quando, já na idade madura, ainda lhe vicejavam corpo e destreza de um varão. Tipo honesto e de confiança, que não quis nunca pegar em tostão de seu ninguém. Defeito seu, no entanto, foi bancar o teimoso e genioso, ver um marruá turrão. E somente nas relembranças da esposa infiel. Seria só, mesmo? Em contrapartida, já ancião, amigou-se com a Dos Anjos, como ele próprio, também enferrujada de abstinência.

Pouco ou quase nada da biografia do meu enigmático herói conseguiu escarafunchar a bisbilhotice de minhas irmãs, hábeis em remarem nos anais da curiosidade. A respeito do sertanejo fechado em copas, muito a conta-gotas, soube-se apenas aquilo que, num rasgo de inconfidência, quando assaz instado pela inquisição do Camará, ele atestou, muito prolixo, em edital de fé e com rubrica de cartório: “– Eu disse pra muié que ia sair pelo mundo, tentar ganhar a vida. Como não consegui nada, então eu não volto mais. Vou morrer por aqui mesmo, se Deus quiser.” E foi assim.

Morreu, de fato, solitário e abandonado, como largada deixara a família, nos longes do Sertão-Central. Bateu as botas no quartinho velho do sítio, tempos depois que meu pai torrou suas malvas, sarças, marmeleiros e unhas-de-gato de capiau agricultor. Por aqueles dias de prostração, agonia e morte de Seu Antônio Néri, que se finou sem ‘honra ao mérito’, por genioso e silencioso, o Camará, com seu engenho velho na prateleira, já não produzia rapaduras, não tinha mais seus pés de angico, de pau-branco, sabiá nem maçaranduba. Era cada vez mato fino, sem cana-de-açúcar, matinho fino a mais.

Toda a compensação – conforme me reportaram as más-línguas – foi que Seu Antônio Néri, ainda em vida e já muito enferrujado, lá para mais perto do seu termo, muito come-quieto, deu de arranjar-se com a Dos Anjos. Esta, uma viúva potiguar, sofrida e bastante escavacada, com récua de filhos, que sobrara de outro morador, virado defunto sob uma parede desabada, e que fora cabra de Lampião, cuja graça, por sinal, também era Antônio, um Antônio Canguru.

Fort., 1º/02/2010.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 01/02/2010
Reeditado em 01/02/2010
Código do texto: T2063136
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