CONVERSA FIADA
CONVERSA FIADA
Obrigada pelos elogios. Mas não precisa tecer elogios só para conseguir ouvir de mim as coisas que eu sei. Eu vou contar de qualquer maneira e você sabe disso.
Vi sim o filho de Dona Dora, o Florival, aquele que brigou com o Marinho na festa do Zé Venâncio. Fiquei sabendo que o Marinho ofendeu o coitado com umas bobageiras de moço virgem, coisa à toa. Mas o Florival não gostou nadica da conversa desaforada do Marinho e exigiu um pedido de desculpa. Imagine se o Marinho é homem de pedir desculpa para alguém? A coisa foi tomando vulto e rolaram feito porcos na lama perto do laranjal. Você lembra disso? Você estava lá com sua senhora, que Deus a tenha! Era soco e pontapé que não acabava mais. Até o Zé Venâncio, homem bom que Deus pôs na terra, teve que apartar a brigaiada dos dois. Então, ontem o Flô passou na frente da minha porta, mas não falei com ele não. Tive um pouco de medo de bagunça, de confusão. Estava um calor de agoniar, até a cadelinha Marica estava aflita, então fomos sentar na varanda esperando que a brisa refrescasse um bocadinho com o entrar da noite. Luz apagada pra afugentar a muriçoca e diminuir o calor. Mas, qual nada, a noite chegou e o calor se instalou. Parecia um forno! O Julio cochilou um tiquinho na cadeira dele, e eu estava lendo uns causos do Boldrin embaixo da luminária de mesa, quando assuntei uma figura esquisita, mal vestida, passar bem devagar como quem vai pra banda da bica do Chico. Ele estava estranho, com umas roupas grandes que não pareciam ser deles. Tinha um chapéu preto na cabeça, e a barba estava grande. Parecia um mendigo, o pobre. Ele até deu uma paradinha, de costas, pra minha casa. Pensei em chamar pra saber o que estava acontecendo, mas hesitei e acabei não falando com ele. Levantei devagarzinho da minha cadeirinha e caminhei até o portão da rua, e ele nem me viu. Vi que ele andava mancando um pouquinho da perna esquerda será que foi naquela briga do ano passado? Mas ele parecia confuso, dava a impressão de que ele não sabia onde estava. Tive até medo do infeliz. É, depois que a Dona Dora morreu, no começo desse ano, de uma morte muito esquisita que até agora não ficou esclarecida, o rapaz andou fechado em casa e quase não fala com ninguém. Dona Dora tinha um bom dinheiro que ficou do falecido Luiz, e o rapaz herdou tudinho com a morte da mãe. É por causa dessa dinheirama que as coisas não ficaram bem esclarecidas. Até a escola o Flô abandonou. Estranho, você não acha? Não vi pra onde ele foi ontem à noite, mas escutei uns zuns zuns lá pra banda da bica e parecia ser a voz dele, mas não tenho certeza. Por causa do calor a gente fica um pouco zoada, né? Sabe que eu até puxei minha cadeirinha pra bem perto do portão para eu ver se ele voltava, e ele voltou lá pelas tantas da madrugada. Não sei dizer com exatidão a hora que era, mas era bem tarde. O Julio já tinha se recolhido, com calor e tudo. Mas eu estava lá, firme e forte com os causos caipiras fechados bem apertados embaixo do braço que aquilo lá não era hora pra ler, ou lia ou assuntava a rua. O Flô voltou sem chapéu. Lembra que eu disse que estava com chapéu preto? Pois então quando ele voltou já estava sem chapéu. A roupa bamba que estava usando parecia que tinha molhado. Fiquei imaginando se ele não tinha entrado na lagoinha da bica pra se refrescar. Ele estava segurando alguma coisa na mão, e não era o chapéu. Parecia uma caixa bem pequena. Lembrava uma caixa de leite longa vida pelo tamanho. Mas estava escuro do outro lado da rua. Cansei de pedir pro Bastião da Prefeitura clarear aquela banda da rua, mas aqui na nossa cidade as coisas demoram demais pra acontecer. É, ele passou do outro lado da rua. Vez ou outra um clarão vindo de alguma casa da vizinhança, alumiava o rosto dele. Ele parecia mais estranho do que quando foi. Parecia abatido, cansado, sei lá. Não descuidei dele mas descuidei do livro do Boldrin e deixei cair. O baque fez ele parar e procurar de onde veio o barulho, me encolhi atrás da amoreira que eu mesma plantei quando era menina ainda, e ele não me viu. Só que aí ele apertou o passo, quase correu na direção da casa dele. Pensei em seguir o infeliz pelo menos pra ter certeza de que ele ia pra casa, mas o meu Julio apareceu lá e ficou brabo comigo: “Vem dormir mulher! Ta pensando que você vai ganhar alguma coisa com investigação da vida alheia?” Resolvi ir cama pra não brigar com ele. Mas dormir, eu não dormi nadinha. Levantei com as galinhas. Além do calor infernal que estava naquela cama, eu tinha essa história na minha cabeça que não me deixava sossegada. Aí você ligou e pediu pra eu vir aqui. Mas, você está me perguntando se eu vi alguma coisa estranha ontem pra mor de quê?