Um pequeno grande defeito
Dias destes a Noêmia Vieira do Nascimento, grande poetisa da Sociedade de Poetas de Vila Prudente, quase setenta anos de experiência literária, resolveu fazer-me uma homenagem. Fiquei super feliz em ser homenageado exatamente pela Noêmia, uma das poetisas mais conceituadas aqui da nossa região; várias vezes premiada em concursos literários realizados pelos hebdomadários da Zona Leste.
Ao receber a homenagem, durante uma de nossas reuniões em que contávamos com aproximadamente uns trinta poetas que, por cortesia, colocaram-se em pé para aplaudirem-me, agradeci a todos através de um rápido e humilde discurso. Em seguida guardei carinhosamente o cartão, todo ele trabalhado artesanalmente pela Noêmia, com uma linda mensagem de honra ao mérito, datilografado pelo Zito, seu marido. Sim! É isso mesmo: datilografado. E para quem não sabe, a Noêmia possui uma máquina de datilografia, da marca Remightton, movida a lenha, e que dizem as más línguas ser do tempo em que o General Osório era ainda soldado raso do exército. Linda, impecável, inteirinha. E conforme ela própria me confidenciou, essa raridade a acompanha a mais de quarenta anos. É sem dúvida alguma sua amiga inseparável.
Computador? Internet? Site? Orkut?... Cruz Credo!!! Ela não quer nem ouvir falar nisso. Ela fala em bom tom que não troca a sua velha e inseparável Reminghtton, por modernidade nenhuma deste mundo.
Até ai tudo bem. Só que há alguns meses atrás ela sofreu uma queda e quebrou o braço em três lugares. Por esse motivo quem tem datilografado os seus textos é o Zito. Inclusive o cartão em minha homenagem foi ele também quem datilografou. E no momento em que recebi a dedicatória, eu, levado pela emoção e pela comoção de tão nobre momento, não percebi que o meu sobrenome, que é “Ferretti”, estava escrito com apenas um “Tê”, ao invés de dois “Tês”. Fato este que só fui perceber quando cheguei em casa, e pude, então, com mais calma apreciar aquela joia maravilhosa que a Noêmia me ofertou.
E agora, no começo de 2010, é que aproveitando as minhas férias, resolvi junto com a Célia Poetisa e mais alguns poetas fazer-lhes uma visita.
Conversa vai, conversa vem, lembrei-me do fato e comentei com a Noêmia. Ela, ao ouvir aquilo, colocou as mãos sobre a cabeça e gritou com o Zito, que estava acomodado a um canto da sala.
----Zito!!! Eu não acredito que fizestes isto!!! Vós me escrevestes o nome do Ferretti, com um “Tê” só!!! Mas que falta de atenção homem!!! –Bradou ela com seu sotaque aportuguesaiado.
O Zito, revestido de todo aquele seu sossego que lhe é peculiar, que só vendo para crer, tirou a mão do queixo, descruzou as pernas calmamente, levantou-se, caminhou todo moroso até a velha máquina de datilografia, descobriu-a, e apontando para ela com o dedo, argumentou pausadamente.
----Como posso escrever corretamente o nome do Ferretti se a máquina esta com defeito!
----Que defeito Zito? Eu nunca percebi defeito nenhum nela! –Retrucou surpresa a Noêmia.
----Pois então venha ver! –Respondeu o Zito.
Com certa dificuldade, devido ao acidente que sofrera, a Noêmia levantou-se e dirigiu-se para perto da máquina de datilografia.
O Zito apontou novamente para a máquina e falou para a Noêmia:
----Tá vendo ai?
A Noêmia olhou, olhou e não percebeu nada de diferente.
----Que defeito que tem a máquina Zito? Estás ficando louco, não estou vendo nada de errado com ela!!!
O Zito sem perder a compostura, olhou carinhosamente para a Noêmia e com um sorrisinho sarcástico no canto da boca falou:
----Noêmia... como eu posso escrever Ferretti com dois “Tês”, se a máquina só tem um “Tê”!
E enquanto a pobre da Noêmia olhava inocentemente para o Zito sem entender o que ele estava querendo dizer, nós, que também não somos "flor que se cheire", quase nos arrebentamos de tanto rir.
E durante o chazinho com torrada, intermediado por alguma poesia declamada por um dos nossos aedos, olhávamos para a cara do Zito e pronto, não tinha jeito... caíamos na gargalhada.