CHAMANDO JESUS DE GENÉSIO.
Durante a Semana Santa, no nordeste do Brasil, é muito comum que grupos de turistas, grupos de escolares e diversas pessoas de todos os lugares, viagem para o interior do Estado de Pernambuco, mais precisamente para o município de Brejo da Madre de Deus, Vila de Fazenda Nova, para assistirem o espetáculo cultural da Paixão de Cristo que é apresentado num belíssimo teatro ao ar livre no sítio cultural de Nova Jerusalém!
Nos dias de encenação a cidade fica em polvorosa! São milhares de pessoas que por conta do espetáculo, movimentam o comércio do pequeno município!
Enquanto esperam começar a Paixão de Cristo, as pessoas compram souvenirs nas lojas e camelôs, e também comem e bebem muito nas lanchonetes e bares que ficam nos arredores do teatro.
A história que agora vou lhes contar diz respeito a dois desses visitantes, figuras hilárias, chamados José Custódio, vulgo Cola Selo, e Chico Tenório, vulgo Chico Cachaça.
O Cola Selo é uma dessas pessoas para quem tudo de errado, de diferente, e esdrúxulo acontece com ela! Tem história pra mais de cem livros! Quem ouve as conversas dele por dez minutos, sai com a barriga doendo, de tanto rir!
Tudo começou quando ele e seu amigo Chico Cachaça resolveram comprar duas passagens de ônibus para uma excursão numa pequena agência de viagens da cidade em que moravam. A compra das passagens dava direito além da viagem de ida e volta, aos ingressos para assistirem a Paixão de Cristo em Nova Jerusalém!
No dia marcado, os dois amigos combinaram de se encontrar num boteco próximo ao local de saída do ônibus que iria leva-los ao interior de Pernambuco. Eles queriam tomar uns goles antes da viagem, que era pra relaxarem e dormirem um pouco durante o trajeto! Tomaram alguns goles a mais, e quase perdem o embarque! Quando chegaram ao local da saída, o ônibus já estava em movimento, e os dois, meio trôpegos, correram em direção ao mesmo, batendo com as mãos na lataria e gritando já alterados: “Motorista, seu corno, pare essa merda que a gente quer subir! Pare viado fio da puta”, e gritaram outros impropérios por mais alguns segundos até que o motorista se deu conta da algazarra, e parou o ônibus.
Os dois subiram afogueados e irados dizendo: “Você ia deixar a gente era? Nóis pagamo as passage e egigimo respeito!” - O motorista tentou argumentar dizendo que tinha esperado quinze minutos para que os atrasadinhos pudessem chegar, mas, não convenceu aos dois, que continuavam a protestar dizendo: “ Se nóis pagô, nóis pagô. Intão, temo nossos dereito!”, e foram entrando no ônibus, que já estava quase todo ocupado.
À medida que iam entrando, os dois se entreolhavam desconfiados! Só acharam lugar nas últimas cadeiras, naquele ponto crítico, junto ao sanitário, coladinho ao motor. Quer dizer: barulho, calor e aquele desagradável cheirinho!
Depois de se acomodarem, Cola Selo perguntou baixinho ao Chico Cachaça: “será que nóis erremo de ônibu? Pruquê esse aqui tá cheio de jove! ” _ Chico Cachaça respondeu meio desalentado: “ sei lá, mas deixa, pra vê no que vai dá!”.
Acontece que o ônibus estava repleto de alunos de uma escola pública, adolescentes que, como naturalmente acontece, faziam uma bagunça terrível durante a viagem.
Passada a primeira meia hora, nossos turistas relaxaram e começaram a cochilar, e com mais alguns minutos, já estavam roncando, o que provocou o espírito de traquinagem dos garotos!
Cola Selo, que tinha esse apelido por viver com aquela língua enorme para fora da boca, pois era gordinho e tinha dificuldade de respirar pelo nariz, foi a primeira vítima dos meninos, que encheram a língua do coitado de creme dental! No início ele ainda se remexeu, fungou, pigarreou, mas depois, apagou de vez, e os meninos completaram a maquiagem com um batom bem vermelho, arrodeando os lábios, as bochechas e os olhos.
Enquanto isso, outros garotos pintavam o rosto do Chico Cachaça, que estava num sono profundo, roncando que nem uma porca!
Imaginem que cena ridícula! Dois marmanjos bêbados, com o rosto todo pintado de batom, e um ainda com a língua atolada em creme dental!
A terminarem a maquiagem, os meninos voltaram para seus lugares, e numa algazarra comedida, riam muito dos dois infortunados passageiros, esperando que eles não acordassem antes de chegarem ao destino! E foi o que aconteceu! Quando o ônibus parou em Nova Jerusalém os dois ainda dormiam, e os peraltas trataram de descer rápido para não terem que responder pelas presepadas que fizeram!
Todos desceram, menos Cola Selo e Chico Cachaça, que ainda roncavam no final do ônibus. O motorista percebendo que ainda havia alguém no interior do coletivo, foi ao encontro deles para informar que haviam chegado ao destino. Quando deparou-se com aquela cena, tomou um susto e ficou temeroso em acordá-los, pois, não sabia qual seria a reação dos mesmos! Sacolejou um e outro, e com alguma dificuldade conseguiu despertá-los dizendo que já haviam chegado. Feito isso, foi logo saindo, rapidinho, para não ter que dar explicações.
Ambos se espreguiçaram, pigarrearam, Cola Selo sentiu uma coisa estranha na língua e ficou colocando-a para dentro e para fora da boca, no intuito de descobrir que diabo era aquilo! Como se tivessem combinado, eles se esticaram na cadeira e olharam um para o outro ao mesmo tempo, e ambos deram um grito e recuaram como se estivessem vendo o capeta!
“Que peste é isso! Que bixiga lixa! Foram aqueles meninos, vou pegar de um por um!” diziam ambos saindo do ônibus, meio cambaleantes, ao tempo em que esfregavam o rosto com as mãos, piorando a situação!
Os meninos, ao descerem, dispersaram e trataram de ir para bem longe, ficando a uma distância segura, só esperando para verem a hora que os dois desceriam com o rosto todo pintado!
Cola Selo e Chico Cachaça apareceram enfurecidos: “Quem foi o corno que fez isso? Quem foi o fio da puta que lambuzou a gente? Apareça cabra safado, mostre a cara pra levar um bulaçhão, seu viado sem vergonha!”
A rapaziada escondida ao longe, ria que chorava num misto de medo e satisfação, regozijando-se do feito, que, com certeza, daria história para muitos anos!
Os infortunados, não vendo ninguém aparecer para assumir a responsabilidade, foram de encontro ao motorista, que àquela altura, verificava a condição dos pneus como se nada tivesse acontecido. “ E então seu motorista, quem foi que fez isso com nóis? O sinhô é responsavi por isso! Nóis pagô as passage e temu nossos dereito!
O motorista já irritado, sem dar muita trela para os dois, disse curto e grosso: “Olhe aqui, meus senhores, eu não tenho obrigação de ficar tomando conta dos passageiros. A minha obrigação é prestar atenção na estrada e levá-los ao destino, e isso eu fiz! Agora, se os senhores tiverem alguma reclamação a fazer, quando voltarem, procurem o dono da empresa e peçam explicações a ele. Eu não posso fazer nada!” E saiu deixando os dois a reclamarem e dizerem impropérios que não acabavam mais.
Os garotos riam pra se acabarem, mas não ousavam chegar perto! Passados alguns minutos, foram se acalmando e procurando outro assunto para galhofas.
Não vendo outra solução, Cola Selo e Chico Cachaça procuraram um boteco para limpar a lambuzeira e fazerem hora enquanto esperavam o espetáculo.
Lá para as tantas, o movimento aumentou e os dois biriteiros concordaram que era hora de acompanharem a multidão que se dirigia ao teatro.
Quando se levantaram, sentiram o drama! Estavam quase embriagados, trocando as pernas. Pagaram a conta, não sem muita dificuldade! Sabem como é né? Dinheiro de bêbado é aquela coisa amassada, difícil de sair do bolso e das mãos!
Antes de saírem, resolveram pegar a toalha da mesa do boteco. Era uma toalha de chita, toda florida. Cola Selo disse para Chico: “ Lá dentro é uma correria danada, e pra nóis num se perdê, nóis vai agarrado na tuáia, e assim nóis num disgruda um do ôtro”. Chico respondeu: “É mermo. Boa idéia!”. E lá se foram aquelas duas figuras, meio que trocando as pernas, procurar a fila para entrarem no maior teatro ao ar livre do mundo!
Aos trancos e barrancos eles conseguiram entrar e foram se encaminhando para o palco da primeira cena, que era a tentação sofrida por Jesus nas montanhas, por parte do Diabo, após exílio de quarenta dias, jejuando e orando a Deus!
Para os nossos personagens, chegar à essa primeira estação foi relativamente fácil. As dificuldades começariam a partir dali!
Ao final do primeiro ato as pessoas começaram a correr em direção ao próximo palco, que era o do Sermão da Montanha, onde Jesus curaria cegos, ensinaria o Pai Nosso, etc.
Cola Selo e Chico Cachaça bem que tentaram acompanhar a multidão que se deslocava em correria. Chico Cachaça na frente, Cola Selo um pouco atrás, ambos agarrados na toalha de chita que haviam furtado do boteco. Não demorou muito e Cola Selo, que já vivia com a língua de fora, começou a esmorecer de cansaço, e, de vermelho, começou a ficar roxo, e quando não aguentou mais, largou a toalha de chita, levando um papoco naquele chão empoeirado, no meio daquela multidão, sendo pisoteado por mais de uma centena de espectadores!
Quando a turba passou e a poeira baixou, apareceu Cola Selo, deitado no chão, coberto de terra, com a cara toda empapada numa mistura de sangue e poeira, sem falar nos resquícios de batom que os meninos haviam colocado no ônibus e que ele não conseguira limpar de todo. Gemendo e quase desacordado, Cola Selo foi recolhido pelo pessoal da segurança e encaminhado para o posto médico do teatro.
Não se dando conta do que acontecera ao amigo, Chico Cachaça continuou a correr, isto é, a ser empurrado pela multidão em direção ao próximo palco. Lá chegando, esbaforido, flexionou o tronco para frente baixando a cabeça, colocando as mãos nos joelhos tentou respirar fundo para recuperar o fôlego, e o que conseguiu foi inspirar meio quilo de poiera. Nesse instante ele percebeu que estava com a toalha de chita em uma das mãos, e foi aí que lembrou-se do amigo Cola, como o chamava na intimidade! Levantou a cabeça, olhou para trás na esperança de encontrá-lo, chamou-o, gritou por ele, e não obtendo qualquer resposta, pensou: “Ôxi, onde foi que aquele bixiguento se meteu? Será que foi tumá uma caninha? E agora, cumé que eu vô incontrá ele de novo?”. E desse momento em diante, Chico Cachaça só tinha uma coisa na cabeça: encontrar o fiel amigo desaparecido!
Chico correu, ou melhor, foi empurrado pela multidão, para muitos outros palcos do espetáculo, porém, sua idéia fixa era encontrar o amigo Cola Selo e se mandarem daquela “loucura”!
Num desses trajetos entre um palco e outro, Chico Cachaça deparou-se com um figurante trajando roupas de soldado romano, montado em um cavalo branco todo paramentado com os símbolos do Império Romano. Quando o cavaleiro passou, Chico deu um salto e agarrou-se nas pernas do suposto soldado, pedindo pelo amor de Deus que lhe desse uma carona até à saída do teatro! O figurante sem entender nada, esporeou o pobre cavalo que, relinchando, disparou por entre os espectadores, quase provocando um acidente! Com o impulso do cavalo, Chico foi jogado ao chão, estatelando-se no barro vermelho, porém, ao contrário de Cola Selo, levantou-se rapidamente para não ser pisoteado pela multidão.
Já no final da encenação, Chico, cansado e desconsolado, cabisbaixo, rogava a Deus por um sinal, por uma saída para o seu desespero, quando de repente ouviu um estrondo e viu uma luz intensa iluminar o céu do local. Chico olhou para cima e tomou um susto! Era Jesus ascendendo aos céus, ressuscitando! Então Chico gritou: “Valei-mi Nosso Sinhô Jesus Cristinho! Só o sinhô pra mi livrá dessa! Pu favô meu pai, ajuda a eu incontrá o meu amigo Cola Selo, pru mode nóis si mandá daqui!
O espetáculo acabou; a multidão dispersou; Chico continuava a procurar o amigo perdido na confusão! Só bem depois o encontrou. Guiado por seguranças do teatro, foi ao posto médico e reconheceu o amigo Cola Selo, que ainda estava meio grogue, sem falar coisa com coisa!
Chico Cachaça perguntou meio puto da vida, ao amigo Cola Selo: “Ôxi homi, que pexte foi que aconteceu cum tu? Fai duas hora qui ti prucuro, boba de pexte, bixiga lixa! Nem Nosso Sinhô Jesuisinho Crixtinho sabia onde tu tava!
Cola Selo, ainda dopado pela cachaça, e agora mais, pelos analgésicos dados pelos médicos, não entendia nada que Chico estava dizendo, muito menos conseguia responder alguma coisa!
Ele foi levado de ambulância para um hospital público local, onde fez exames mais específicos como radiografias, na pesquisa de possíveis fraturas, e punção do abdome para detectar alguma hemorragia, porém, nada foi encontrado.
Depois de algumas horas Cola Selo foi liberado, indo encontrar com Chico Cachaça na área externa do hospital. Chico, cansado de toda a aventura daquele dia, dormia e roncava em um banco de cimento. Cola Selo, mesmo cheio de dores, foi ao seu encontro e o acordou, assim meio delicadamente, aos safanões, “acorda fi da pexte, vamu imbora, quero i pra casa!”, e Chico, assustado e atordoado levantou-se de supetão dizendo: “foi eu não! Foi eu não!” Só depois que se localizou foi que entendeu o que estava acontecendo, e só não encheu Cola de porrada porque teve pena do estado do coitado!
O ônibus em que vieram já havia partido; os meninos presepeiros deram graças a Deus por não terem que enfrentar a fúria dos dois bebuns!; só restava agora catar os últimos vinténs, que por sorte haviam sobrado, e comprar duas passagens de volta para a sua cidade natal.
Ao chegarem em casa, Chico Cachaça e Cola Selo diziam em altos brados que nunca mais em suas vidas iriam assistir a Paixão de Cristo, e fizeram uma promessa para Noso Padim Pade Ciço, que nunca mais tomariam pinga antes de qualquer viagem, e que só iriam numa excursão quando soubessem quem eram todos os outros passageiros do grupo!