TEMPOS DE FOGO

Por absoluta desinformação a respeito de sua identidade, aqui vou chamá-lo de Clandestino. De fato, jamais eu lhe soube o nome verdadeiro. E vi-o apenas quatro vezes, não mais que isto.

Clandestino foi um efêmero contato que tive, no início dos anos 70. Na verdade, um contato político, e de esquerda, facilitado por um médico, o doutor X. Não lhe cito o prenome porque, hoje, é um homem da direita. Pertence aos quadros do partido neoliberal, dos tucanos. E, por sua cidade natal, ele até já ascendeu, uma vez, a prefeito.

Punham-se em marcha os tempos de fogo. Como é notório, no solo pátrio de então desfilava a intensa onda repressiva às militâncias da dita e “perigosa” esquerda. Socialistas e comunistas eram tidos, pela reação brasileira, como elementos satânicos e nocivos à nacionalidade.

Mas o que havia, na realidade, emanado daquele regime, era um nacionalismo suposto, pois ditado aos “nossos” generais de plantão por hábeis e sorrateiros ventríloquos ianques. Assim, o País assistia estarrecido à sanha anticomunista e a imprensa, com evasivas, sob a batuta da censura prévia, deixava-nos escapulir notícias filtradas, esparsas e fragmentadas sobre a guerrilha nas selvas do Araguaia.

Conforme o lacônico acerto pelo telefone, o primeiro encontro com o desconhecido aconteceu defronte ao Teatro José de Alencar. Àquela época, a praça de mesma denominação ainda abrigava os terminais de ônibus. Então, por motivos óbvios, de segurança mesmo, estaquei ao aguardo de Clandestino, à distância, meio aos populares, numa parada de transporte coletivo. Estava claro que não me ia expor como boi de piranha, à porta do teatro.

Lá no emprego, ganhara de presente um berimbau. Lembrança da Bahia. E fora a esposa do meu empregador que trouxera. Eu me disfarçava no abrigo de ônibus, conforme as pernas me ordenavam. Mas o meu contato, quem sabe utilizando-se da prática e do álibi de defesa pessoal, foi bastante perspicaz e esperto. Chegando à esplanada da casa de espetáculos, observou-me de longe. Manhoso, o gajo notou-me a “subversão” explícita nos óculos escuros. Então, confiante, veio vindo de lá, aproximou-se. Sem titubear, ele me passou a senha.

Num após, eu quis saber como ele dera comigo, longe e fora do ponto marcado. O rapaz, de sotaque mais para os do Sudeste, talvez mineiro, talvez paulista, apenas sorriu e fez:

“– Ora, com um berimbau daqueles na mão, você estava em atitude desbragadamente suspeita” – e, depois, riu mais ainda.

Dia, local e hora foram acordados para a gente conversar. Apartamento tal, no edifício Y, centro de Fortaleza. Na data aprazada, somente eu possuía a marca pública de haver passado por uma pia batismal. Quero dizer, o único dos dois que levava um nome tal adquirira no cartório. E pela intuição, e mais pela discrição que competia nortear o militante, a mim não me interessava mesmo registrar nem situar no mundo real quem era quem.

Durante a audiência com o jovem, por cerca de hora e meia, falou-se de tudo, menos de política. Claro que aquele silêncio dele sobre o tema “perigoso” era parte da tática e da sua estratégia para não dizer xô ao inhambu. Ao declarar-lhe que estava professor de inglês, sacou dos seus papéis um poema, que me ofereceu para ler e levar comigo. O texto cáustico fazia reserva ao ensino desse idioma, minimizando-o, e priorizava o português.

Lá pelas tantas, tomando à mão um Guimarães Rosa – seus únicos móveis eram dois sofás, a rede sempre armada e uma estante –, leu-me trechos e mais trechos do “Grande sertão: veredas”, o que me botou mais ainda a deduzir o seguinte: o cara devia mesmo ser mineiro, mais pelo bairrismo e orgulho de ter um escritor de marca. Mas também pelo idioleto, na ponta da língua, embora sem que proferisse em nenhum momento aquele inconfundível “uai”.

A terceira vez que me fui ter com o estranho, passou-me dois documentos breves, lavrados em espanhol e editados em Pequim. Sem nada perguntar, eu ia deduzindo as coisas: algo da linha chinesa. Também resumido foi o papo daquela vez. O moço alegou que iria ter de sair. Era encontro de urgência com alguém. A brevidade do diálogo deu-me a impressão de que o “estudante” estaria apreensivo, muito sobressaltado, quem sabe temendo uma queda do “aparelho”, no edifício Y.

O último encontro com Clandestino, uma semana depois, ocorreu na Avenida Imperador, centro, numa parada de coletivos. Marcáramos ali, sim, porém, ao me aproximar, ele balbuciou que eu seguisse em frente, pois estava seguido pelos homens da repressão. Não me resta dúvida: pela idade verde, com certeza seria estudante universitário, talvez até cassado pela felonia do “Decreto 477”, editado pelo ministro-ditador Alfredo Buzaid.

Perdi o bom papo literário. Não o encontrei nunca mais. O médico do contato, idem. Virou casaca. Andou embrenhado num dos partidos oficiais, onde não clinicava, mas virou prefeito tucano de cidade longínqua. Além das curiosidades normais, que assaltam a gente, as maiores que me ficaram com relação ao camarada – provavelmente mineiro – foi esta série de duvidas: teria ele sido preso naquele mesmo dia? E, se foi, safou-se dos porões da ditadura com vida? Ou virou mais um número entre os torturados até a morte?

Aqueles foram desgraçados dias de fogo. E este é um ‘causo’, sacado à vida real, que conto para que todos saibam que não é ficção a hoje vasta literatura publicada sobre a descomunal repressão política havida, no Brasil, sob o tacão da ditadura militarista (64/85), e soprada pela barriga dos contumazes invasores e belicistas ianques.

Fort., 27/12/2009.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 27/12/2009
Reeditado em 27/12/2009
Código do texto: T1998003
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