NESTOR, PAZ E AMOR II - E A LEI DE MURPHY
NESTOR, PAZ E AMOR II – E A LEI DE MURPHY
“Os olhos da cara podem não ver, mas o outro seguramente sente!”
Após o pandemônio do banheiro, a verdade veio à tona. Nem tanto mexeram, tampouco refletiram: descoberta a extensão elétrica, o furo na tábua do banheiro veio por dedução e com ele, o castigo.
--- Viu as costas dos meninos?
--- Não!... castigo do ministro?
--- Decerto. Estão em petição de miséria!... na carne viva!
--- Ah! As varas da “goiabeira” outro dia na mão do ministro! Surpreendeu-se com a descoberta. ... E o Nestor?
--- Anda meio ressabiado.
As coisas para Nestor não caminhavam bem. Aos olhos de uns não passava de um aproveitador, maluco total; outros, por si, estendiam-lhe a condescendência para julgá-lo apenas desajustado. Menos mal. De qualquer forma, imagens pouco recomendáveis.
Não se podia afirmar simplesmente que Nestor fosse doido varrido, pois não era. Reconheça-se lá, seus momentos de falar, falar e não dizer nada, o que poderia vir a ser, no máximo, uma tendência. Por outro lado, nele, há momentos esclarecidos e de bom proveito. Acredita-se, neste caso, tratar-se de doido manso. Então não havia de ser nada, não havia que se guardar qualquer temor dele, pois doido manso por esse país afora não anda recebendo mesuras respeitosas e passando até atestados de sanidade? Isso é público e notório.
Todavia não cabiam reparos em seus devaneios. Neles era soberbo! Ele, quando Salomão em seu fausto e sua glória, distribuía quiméricas justiças e cortejava elegantemente as senhoras, o que por certo desagradava boa parte da igreja; por outro lado, quando Daniel, profetizava absurdos, transformando tudo numa divertida bufonaria, certamente contrariando a outra parte dela.
Certo dia, em dada hora da noite, a pregação seguia fervorosa:
--- ...Um só Deus, um só Senhor!... Dizia o ex-açougueiro pregador.
Estavam os irmãos concentrados. Bíblia aberta, Nestor inquieto postara-se à frente deles. Percebia-se nitidamente que, sob os efeitos das trombadas que o nó saturado de informações dava em seus miolos, faria brotar algo daquela barafunda.
--- Mas Buda também é Deus! Observou dirigindo-se inesperado ao pregador.
--- Quem, meu irmão?
--- Buda!...Buda, o Iluminado!
--- Meu irmão, Senhor é um só, é o Senhor Jesus! Enfatizou o dirigente.
--- Mas Buda também foi um grande Enviado, irmão.
--- Buda! Ora, isso lá é nome de Deus, irmão!
--- E Alá também! Emendou.
--- Outro Deus?
--- Sim, irmão, outro Deus... Outros povos os adoram!
O velho ex-açougueiro balançou a cabeça acercando-se de Nestor:
--- Vá, filho, esfria a cabecinha.
E chamando pelo filho maior pediu-lhe arrumasse a cama do importuno.
Os nomes de Alá e Buda agora saltitavam na cabeça do pobre pregador. Em dado momento falou para si: “Alá, Buda, será que isso é mesmo Deus? Buda? Isso num parece mais o nome daquela parte?”
E o pregador voltou à sua linha de convicção, entregando-se Nestor a recolher suas dúvidas, matutando seriamente na divindade do príncipe iluminado e no Deus de Maomé. Não conseguia dormir.
Na verdade, ali, na cabeça dos freqüentadores, não cabiam mais deuses. Nada de Iluminados, nada de Enviados, nada que a Bíblia não aprovasse. E com isso, Nestor ia-se desgastando.
Em Nestor, tudo podia estar desarranjado, seus repentes, suas aversões, simpatias e contradições, tudo podia destrambelhar nas raias da ocasião, mas que não fizessem reparos em seu intestino. Nesse não! Havia de ser no máximo meia hora após o café. Não mais que isso. Beirando o final do prazo, fatalmente tomava o “trieiro” rumo à privada. Era um relógio. A “deixa” logo estava nele. No hábito que ele provocava. Na pontualidade.
Justiça se faça aos meninos. Jamais em momentos inconscientes, viagens “baratinadas” eles exploraram maldosamente a Nestor. Agora, por ironia, a armação pra cima do velho hippie levava em conta o único ponto infalível do seu mísero viver --- o intestino. Este, pelo hábito criado, ofereceu-lhes a senha para agir utilizando o senso de oportunidade já que contavam, na cozinha, com o material da trama.
O martírio das costas, ainda dolorido, cobravam uma desforra da meninada.
Na cidade, quem não utiliza o recôndito da mata para suas necessidades fisiológicas, utiliza as privadas domésticas. São casinholas rústicas cobrindo área pouco mais de metro quadrado, erguidas com adobe sem reboco, onde se vê entremeados dezenas de nichos rendados por aranhas à cata de moscas “zumbideiras”. No piso, tábuas fortes trazem um buraco quadrado de palmo no centro. Em casa do ministro, a porta da casinha dá-se para o fundo do quintal, vedada por arranjo de tábuas de caixotes. Em seu interior, uma armação na forma dum “U”, depositária dos sabugos destinados à higiene final. Àqueles que, por gosto ou questão de possuírem registros mais ajustados podem, ao seu dispor, optar por gravetos obtendo o mesmo resultado.
Observaram-no, porém, certo dia entrar na cozinha. Bule do café à mão, virou-o numa caneca esmaltada levando-a incontinenti à boca; num repente, repeliu-a, passando assoprá-la grotescamente. Bebia e assoprava. Bebia e assoprava. Por fim, à vontade, pôs-se a mordiscar um volumoso biscoito frito.
Não dava conta, o infeliz, de quantos dias os meninos o espreitava.
--- Birinha, prepara as “coisa” e espera lá. Ordenou o irmão mais velho.
O plano urdido confiava no intestino de Nestor. Afinal foram dias e dias de “mutuca” vigiando os hábitos do velho hippie; em todos eles, terminando o café, o organismo se lhe contraía sinalizando iminente evacuação.
--- Vamos! Saíram os dois últimos irmãos.
Na cozinha, Nestor levantava-se estirando os braços preguiçosamente recompondo-se. Bateu na barriga aparentando-se satisfeito e saiu apressado.
Caminhando senhor de toda altivez do mundo, cabeça erguida, dono da consciência mais limpa e tranqüila possível, vinha o velho ministro a caminhar pelo trieiro do quintal. Rumava inocente à privada, antecipando o caminho e o destino do antigo hippie.
De sua bendita serenidade, assoviava popular modinha caipira, seguindo, sem saber, que três pares de olhos astutos, num momento transidos pela surpresa e pelo temor, o seguiam até dar entrada no recinto.
Conta-se que, apenas um dos três meninos ousou ficar para testemunhar os fatos. Minutos depois, um corpo arquejado saiu arrastando as pernas. Numa mão trêmula, sustinha a calça no meio da bunda descoberta; noutra, brandia um sabugo usado. De longe se percebia o acúmulo das rugas na testa, sobressaindo-se os lábios chupados; as pernas fechavam até altura dos joelhos e abriam-se em baixo para a penosa locomoção. Deu uns passos incertos, e a seguir soltou um grito medonho misto de dor e de ódio, atirando o sabugo para longe.
--- Adãoziiinhôôô!
O terceiro olho ardia e remoía no clamor da sua fúria.
Pimentas vermelhas, normalmente curtidas em óleo, com o passar do tempo deixam o caldo colorido. A pimenta cumari, não. Extremamente ardidas e terrivelmente picantes, as pimentinhas amarelas conservam o meio curtido praticamente incolor. Era o que se viu na cozinha, e o que veio a calhar no sabugo.
A goiabeira, pródiga em frutos e alheia aos fatos humanos, infelizmente viria a perder novos galhos. É o preço de se viver.