O PINTO BOSA

Talvez este nome (Bosa) fosse oriundo de Barbosa, sobrenome, se é que ele era mesmo um Barbosa. O que me consta, apenas, de cabeça, lá das minhas relembranças de menino, é que todos no bairro só o conheciam como Bosa.

Lembro-me vagamente de que, uma vez, ele declinou chamar-se Francisco. Outros apelidos que, com o tempo, ele contraíra – Filho do Delegado e Pinto Bosa – foram invenções botadas pelo Pedro Paulo que, no caso em questão, deu banho de cuia no Orlando, de Seu Manuelzão, o primeiro camarada do Monte Castelo que não vacilava em pôr um apodo em pobres mortais.

Mas o Bosa não topava, nem um pouquinho, com a cara e os modos enxeridos do Pedro Paulo. E sabia, de antemão, que as duas alcunhas, a seu favor, que eram correntes no patamar do bairro, sem dúvida alguma, vinham da banda inventiva do PP.

O “causo” que me proponho a desparafusar, agora, não é bem um conto, mas uma homenagem a um grande cachaceiro. Grande não por bebericar até chegar às raias do coma alcoólico; grande não porque saísse a chutar cestos de lixo e a esbravejar palavrões, fomentando desordem, publicamente. Um grande cachaceiro pelo comportamento nobre e retilíneo, sem ofender a nem b, e sempre prestativo para servir e fazer favores, sem, no entanto, ser um serviçal. Foi um grande cachaceiro por ter sido um homem bom, embora não se possa, ao inverso, afirmar com segurança que ele tenha sido um bom homem.

Não me perguntem que profissão, ou ofício, o nosso herói tocava em sua vida. Uma coisa é certa: as calças dele não portavam bolsos. Era sem emprego, mas um hábil e exímio gajo em fazer mandados. Na certa, sua outra primeira característica era ser um excelente tomador de cachaça. Com palavras diversas, o Bosa era um cachaceiro solteirão de boa marca registrada. Não apenas era dado à água-que-passarinho-não-bebe. O moço a ingeria, na maior boa, era com farinha. Em tempo: nunca alguém o flagrou, em pleno exercício de embriaguez, a fazer nenhuma desordem.

Raro, muito difícil, mesmo, era raríssimo que vossemecês o vissem em estado de sobriedade. Andava sempre troviscado, movido ao líquido etílico. Contudo, jamais se embebedava por completo. Aquilo de beber constante, sem pagar o copo, era dele mesmo. Parecia-lhe um imperativo fisiológico: beber a locé, e sem dinheiro algum na algibeira. Para domar a fome de um cristão poucos se dispõem, em qualquer parte do mundo; todavia, enorme é a récua de pessoas que fornece cachaça, de graça, para divertir-se com um infeliz que, à custa da birita, vai, acolá na esquina, virar as pernas para o ar.

Pois com o Bosa não era diferente. Mas, como exceção, ainda encontrava almas boas que lhe tiravam o bandulho da miséria. Aliás, era sortudo. Sendo tão servidor, um leva-e-traz de todos os mandados e recados, o povaréu do Monte Castelo o socorria sempre às horas do almoço. No jantar, ele desaparecia. Também, já estava com o tanque cheio. Minha mãe, mesmo, era uma daquelas almas que, vez por outra, lhe oferecia um pratinho.

Ora, mas por que Pinto Bosa? E eu sei lá... Agora, Filho do Delegado era porque, enquanto podia fazer um quatro com as pernas, sem tropicar, permanecia pelo menos 3/5 do seu tempo diário à disposição da residência do subdelegado, o qual ainda não carecia de ser bacharel em Direito. No entanto, Seu Zé Francisco, o sub, sempre de terno branco e gravatinha vermelha, era um venerável funcionário público.

Engraçado, isto!... No Monte Castelo, o Bosa era manso como um boi, quando este perde os grãos. Não se metia em fuzuê; só fazia mandados e tinha fama de pau para toda obra. Só que parecia não ir muito bem com a própria mãe, mãe lá dele. A dita-cuja morava noutro bairro vizinho, em companhia de uma filha coroa e prostituta. Como diziam os filhos de Candinha, a velha batia uma macumba roxa. Certa vez, na bodega do Seu Periquito, a velha mãe do Bosa lhe trouxe um prato de comida, e para quê! Ao pegar no terém, logo o prato voou foi longe, lá no meio da rua.

Nunca vi, mas as más línguas rezavam que também o Pinto Bosa era chegado aos caboclos, coisa assim de cultuar os ritos áfricos. Nunca vi, por isso não vou lhes afiançar com papel de cartório. Dele só lhes posso testemunhar que foi o melhor cachaceiro que conheci. Um cachaceiro insigne, no meu modesto parecer. Não era carne nem peixe. Uma vez só eu o vi totalmente bom, quero dizer, sem estar troviscado, e arrisquei a pergunta boba:

“– Bosa, esse negócio de macumba serve mesmo para alguma coisa?” Aí o Bosa, ao menos uma vez na vida, completamente lúcido e sóbrio, desabotoou o verbo, na maior mansidão do mundo, e sapecou este petardo: “Lá nada!... É só meio de vida”.

Não vou contestar o sobrenatural, aqui. Tampouco irei contrariar o que falou o Bosa, posto que, até hoje, ainda não tenha visto nada sobre as matérias afro-brasileiras. E me tenham paciência, não me levem ao calvário, prezadas damas e caros senhores. Entretanto, para não ficar montado em cima da muralha, eu ainda jogo fichas naquele dito dos espanhóis: “Yo no creo en las brujas, pero que las hay, las hay”.

Fort., 23/12/2009.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 23/12/2009
Reeditado em 23/12/2009
Código do texto: T1992309
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