Minha Doce Maria

1 - Maria das Dores

e serás para sempre a minha doce Maria, Maria das Dores de todas as dores do mundo. E ainda que fosses Maria Augusta ou Antonieta, Maria do Rosário e do Amor Perfeito, da Consolação, do Amparo ou da Luz, ainda assim tu serias apenas a minha doce Maria. Pois não foi por acaso que eu te descobri se descobrindo numa das tuas noites brancas, noites de luar muito vago e claro; e é ainda por esse motivo que em alguns momentos no decorrer desse texto eu te chamarei de Maria e que noutras ocasiões te nomearei de Das Dores, pausadamente. E será ainda por tudo isso e por ti que deixarei registradas essas linhas, pois que tudo aqui vai escrito em prol da tua presença e é apenas pela causa tua que existe. É, pois, também por tua causa que tenho andado tão lacrimoso e que tenho escrito e pensado tanto ultimamente, pois que esse tudo que aqui vai sobre ti deve ser entendido como um reconhecimento e uma saudação percebida ao longe no acenar lento de umas mãos e no gesto deliberado e imperfeito da cabeça perfeitamente percebido no lado oposto da rua em que ias distraída e quase nua; que tudo se fixe então como essa rosa presente entre meus dedos e como uma canção de amor em prosa e versos soprada pelo vento e endereçada a essa bela Maria. Pois que tudo o que aqui se fez fez-se unicamente por ela e para que ela se distraia numa ou noutra daquelas noites de Lua cheia e vaga e mansa a bailar leitosa no céu entre o momento em que ela se deita e aquele em que de fato adormece quase encantada. Pois que essa delicada Maria é como uma princesa adormecida num bosque distante e margeado por largo rio e cascata de águas cristalinas localizadas num canto qualquer do seu quarto. É dessa maneira então que a minha voz às vezes se assemelhará às vozes de algumas dessas Marias e gritará algo como num coral imóvel na nave de uma igreja; e que esse algo então se faça como o canto de mil anjos e que toque nas partes de algumas dessas Marias provocando nelas um estranho frisson e um despertar. Nessas Marias do bom parto e da boa morte, da luz, das mercês e do amparo. Só depois disso eu poderei me ajeitar sossegado às margens daquele estranho riacho de águas claras e escuras, no centro de um pequeno bosque, e ali permanecer enumerando os oito mil outros nomes dessas oito mil Marias, como se contasse estrelas. Pois que essas mulheres são tão muitas – em cada esquina a gente pode se encontrar com uma delas! – e certamente apresentam uma face e um viés sempre particular e diferente. Essa minha Maria - por exemplo - que eu descobri se descobrindo numa das suas agitadas noites, dela – afinal – quem poderá saber das suas tantas dores e alegrias extremas, quer por seu nome de Maria quer pelo outro de das Dores? É possível que alguns de nós consigamos pressentir a terrível dor e a extrema alegria de cada uma delas e dessa minha Maria em especial. Pois se você ai que me lê e que eu pressinto já aflito no desejo mudo de fechar os olhos a essas anotações, eu vos digo o que talvez pouco te interesse nesse momento: não sintais medo nem receio dessa singular Maria, desse veneno adocicado que vem acompanhado de milhares de vidas próprias e alheias. E veja que eu me encontro já há algum tempo a buscar esse caminho e que esse caminhar nos conduz inevitavelmente até o difícil centro dessa visão para que daqui eu possa me dirigir a vós e fazer-vos chegar aos sentimentos e às dores de uma dessas mulheres entrevistos numa noite qualquer de luar e percebidos por detrás da vidraça da janela do quarto de dormir dessa mãe e mulher – e de quantas almas mais couber no corpo de uma mesma pessoa - e desde a mais breve e pequena dor de seu nascimento até o terrível sofrer de uma perda e morte. Então – calculei - o que devo dizer inicialmente dessa minha Maria adorada? Devo principiar pelo essencial, dizer que aqueles longos minutos entre o momento em que ela se deita com as pernas e o coração levemente suspensos e o instante em que de fato adormece são possivelmente os únicos do dia que lhe pertencem de verdade e os mais lúcidos, vivos e transparentes vividos por ela no decorrer das últimas vinte e quatro horas. E que quando ela se deita e tantas vezes se enrosca junto ao corpo de Mariano e pressente (bem mais do que vê) o seu ressonar já meio adormecido pelo cansaço do dia longo em demasia é como se em verdade naqueles poucos minutos ela começasse a se libertar de algumas de suas amarras e algemas e se despertasse com toda a força pra toda uma outra espécie de vida muito íntima, pessoal e colorida. E que esta ou qualquer uma daquelas suas noites não haveria decerto de ser apenas outra noite qualquer e indiferente como as demais. Pois então, se é por aqui que haveremos de começar, sigamos em frente

2 - Maria do Socorro

Maria acomodou-se ao lado do marido e por lá permaneceu silenciosa durante alguns segundos. O rosto branco e a parte superior do tronco de Mariano surgiam dentre o emaranhado de dobras e curvas móveis das cobertas e lençóis. Maria comparou-o a uma fotografia vista dias antes numa revista de esportes: um casal de alpinistas - cordas, martelos e pregos nas mãos - buscava escalar gigantesco iceberg, um bloco monolítico de gelo solto na imensidão das águas. Via-se no retrato a parcela do bloco que aparecia boiando sobre a capa escura das águas, o que impulsionava a imaginação a trabalhar acerca da outra porção possivelmente ainda maior e que jazia escondida na região submersa. E o portentoso bloco de gelo muito se assemelhava a Mariano. Pelo menos é o que lhe parecia. Brotava das águas tão firme e seguro quanto o marido que naquela hora ainda não chegara a adormecer, mas que iniciara já o seu conhecido ressonar, misto de respiração lenta e ritmada. Então Maria se levantou como fazia invariavelmente todas as noites, caminhou até o vão da cozinha, abriu a porta da geladeira e retirou de lá um vasilhame de leite. Encheu o copo até quase a borda sem derramar uma única gota do precioso líquido. Então foi enquanto bebia quase que maquinalmente diante da porta entreaberta da geladeira que seus pensamentos começaram mais uma vez a adentrar naquele estranho e delicioso jogo de todas as noites. Passaram-lhe primeiramente pela cabeça as idéias de que aquela talvez não fosse uma noite como outra qualquer ou que não tivesse nada realmente de especial. Certamente que deveria ser apenas mais uma noite de quarta-feira, meio da semana e com a semana já se escoando feito água da chuva escorrendo rua abaixo na noite de um qualquer 15 de abril que se findava igual a tantos outros que já vivera. Apesar de aquelas noites às vezes lhe ocorrerem em pensamentos assim, ela bem sabia que cada uma delas havia em verdade sido única e especial. Talvez os dias não o fossem tanto assim, sequer as manhãs perdidas ou ganhas no arranjo do lanche matinal das filhas ou as tardes no preparo do jantar e nos deveres de casa das meninas. Mas as noites, estas com certeza eram rubras e especiais e pertenciam unicamente a ela.

Já se aproximava das vinte e três horas e nada até o momento levaria qualquer pessoa a suspeitar que o final daquele dia pudesse de alguma forma se fazer de fato especial ou diferente. As filhas do casal – Maria da Luz, Maria do Socorro e Maria do Amparo - dormiam no quarto ao lado...

Depois que cresceram e tomaram pé de suas próprias vidas, Maria das Dores se sentira um tanto vazia ou esvaziada. Num certo sentido sua vida meio que de alguma forma perdera um tanto do encanto e do valor antigo, do sentido e da razão que a sustinham e faziam subsistir. Nos tempos idos as garotas ocupavam triunfantes e plenas de gritaria e algazarra a maior parte do seu dia. Quando pequenas, o principal havia sido os cuidados maternos essenciais: banhos em horas pré-fixadas, o peito requerido de tempos em tempos, a lavagem de fraudas e roupinhas infantis, as mamadeiras e o ver se estavam excessivamente quentes ou se era necessário esquentá-las um pouco mais. Cada uma das filhas carregava já um jeito próprio de ser e aos poucos aquela mãe foi se descobrindo e se adaptando a todo aquele recém surgido universo de sentimentos e desejos. A filha do meio adaptara-se ao leite aquecido numa determinada temperatura. Se a mamadeira estivesse apenas um grau mais frio ou mais quente que de costume era certo que ela a recusaria ou a devolveria pela metade e mais tarde se apresentaria chata e chorona. Já a Maria da Luz desde cedo mostrara certa aversão ao leite. Ainda pequena - bebê de colo - fizera vômito e se acostumara a sucos e gelatinas.

Depois vieram os anos da escola. Maria se pegou então durante quase uma década se dedicando e se envolvendo nas atividades e tarefas de casa das meninas. Suas tardes se preenchiam com uma excessiva quantidade de afazeres que se multiplicavam por três. Então, durante boa parte de todo aquele tempo, a vida de Das Dores se resumira em muito a viver apenas para os seus familiares e em prol da vida alheia, para o marido e, principalmente, para as filhas, levá-las à escola, preparar-lhes os lanches e mochilas em cada manhã, fazer-lhes o almoço e o jantar pontualmente e aguardar a chegada de Mariano no finzinho da tarde. Às vezes os dois se amavam lá pelo findar da noite, quando as crianças já se encontravam dormindo e a Lua bailava alta no céu.

Mais tarde, na medida em que as filhas iam crescendo, ela começara a sentir como se a sua vida de alguma forma tivesse perdido um tanto do significado e do sentido. O dia-a-dia – que para ela se resumia no cuidar das filhas e na espera do marido - começava agora a lhe apresentar umas novidades, a surgir pleno de possibilidades e isso era o bastante para fazer com que se sentisse extravagante, temerosa e dolorida ao mesmo tempo e lhe fizesse surgir um medo muitas vezes residente naqueles instantes de luz vividos ao lado do marido quase adormecido e das filhas no quarto ao lado. Então as filhas crescidas já não mais ocupavam todo o seu tempo e nem o tempo integral do casal. Elas também não se faziam mais no centro de suas atenções. Não serviam de pretexto para o adiar do amor nem como uma espécie de equilíbrio e sentido de toda a família. A vida não girava mais literalmente em torno delas. Elas com certeza continuavam a ter a sua importância, mas a partir de agora como uma importância relativa que tinha que se haver com a igual importância daquela mulher. Então, as mais doridas eram aquelas noites por propiciarem que a embarcação de Maria da Dores começasse a se sentir solta nas ondas da vida e a se afastar do seu porto seguro.

Às vezes e mesmo sem saber, Mariano ainda servia à mulher como leme ou bússola distante. E continuaria a ser assim ainda por algum tempo. Muitas vezes Maria das Dores se perdia nos devaneios de seus próprios pensamentos e se pegava de repente dirigindo-se altas horas da noite a um Mariano já adormecido; e - sem que tivesse a perfeita compreensão do transcorrido das horas e do estado de sonolência de seu esposo – começava a comentar com ele à respeito de algum sentimento ou pensamento que acaso tivera em algum momento do dia e que lhe houvesse renascido na mente naquele instante. Então era comum de seu homem abrir os olhos sonolentos e - meio acordado, meio dormindo - dizer:

- Vai dormir, Das Dores! Deixa esses problemas para amanhã! Olha que tens que levantar cedo e o dia há de ser longo...

Mas durante o dia ela ainda poderia buscar alguma espécie de salvação e ocupação de seu próprio tempo, inventar coisas para fazer. Se Mariano, por exemplo, comentava que precisava resolver algum tipo de negócio num banco localizado no centro da cidade ou simplesmente fazer um jogo de loteria na casa lotérica do bairro, para lá se dirigia a mulher logo após o almoço ou pouco antes do entardecer, de alguma maneira buscando preencher ou adiar a clara percepção do seu tempo ocioso, do seu vazio, da busca a que dera início de uma forma relativamente suave e viciosa e que agora vinha lhe cobrar sua cabeça a prêmio, o seu valor e a sua dívida.

Mesmo Mariano passara a lhe parecer mais distante do que quando se conheceram ou mesmo há alguns meses ou dias atrás. A passagem do tempo como que fizera que se estranhassem um tanto e se falassem um pouco menos a cada dia. Mariano ainda era para ela um porto bastante seguro, um iceberg e uma espécie de bússola ou farol. Mas agora era talvez como se ela desconhecesse o próprio marido. Mas será – pensava Maria das Dores em muitas daquelas suas noites brancas – será que o conhecera um dia? E sobre ela mesma, o que diria?! Ela se conhecia realmente, sabia de seus próprios gostos e mistérios e desejos?! Saberia diferenciá-los dos de seu marido e de suas filhas? Muitas vezes essa era a questão essencial que lhe surgia naqueles momentos especiais. E mesmo agora – ao perceber o ressonar lento de Mariano semelhante ao vai-vem das ondas batendo na praia - sentira outra vez aquele medo que já se fizera tão seu conhecido. Sentira muito mais medo de si mesma e do seu sentimento do que de qualquer outra coisa em toda a sua vida. Certamente que Mariano era o mesmo a quem conhecera anos atrás, com algumas alterações que a vida vai naturalmente preenchendo e sobrepondo. E decerto que não o deixara de amar e que ele não a amava nem menos e nem mais que um dia antes. Estes problemas com certeza não estavam nele ou na relação dos dois. O fato é que aquelas questões haviam começado a se movimentar mais intimamente e a transitar de por si por dentro dela, vivas e a se fazerem visíveis e exigentes como foram suas três meninas quando bebês ao se posicionarem em busca de seus seios. Muitas vezes então naquelas noites a sua liberdade lhe surgia ou como um bicho esquisito ou como algo do qual ela poderia e deveria imediatamente tomar nas próprias mãos, mesmo que isso a angustiasse e assustasse por demais. E fora então a partir daí que ela começara a se ver e a se sentir como uma atrevida que estivesse deliberadamente abrindo mão de sua bússola e se distanciando de seu porto seguro e do seu ponto de apoio até aquele momento da vida.

Ela era como um ponto cego que começara a se perceber a si mesmo.

3 - Maria do Amparo

Nessa noite de que vos falo Maria das Dores ainda não se achegara até o vidro da janela de seu quarto, mas meio que adivinhara naturalmente que a Lua e seu luar já se faziam visíveis, orquestrando um bailado de estrelas na imensidão do céu. E certamente que aquela Lua nascera rodeada por uma majestosa aura de luz como se fosse um vestido de noiva que tanto a encantava com aquela infinidade de estrelinhas pisca-piscando a sua volta e enfeites encantados na roupa láctea. Naquela noite Das Dores se sentia um pouco como aquela Lua vaga e cheia e bela e rodeada de luz se afastando do Sol e de suas pequeninas estrelas, seu homem e suas filhas. E imaginava ainda carregar em si uma luz semelhante àquela que iluminava a tudo e a todos ao seu redor e que se dissipava como a aura sagrada daquela Lua vaga.

Da janela de seu quarto, Maria calculara ainda agora que todas aquelas estrelas deviam ser uns archotes naturais que Deus havia disposto pelo caminho para iluminar as trevas e as rotas aos viajantes da noite, lanternas e lantejoulas chinesas que emergiam desde tempos imemoriais e dos pontos mais longínquos do infinito espaço existente para além de seu minúsculo quarto de dormir. Das Dores sempre se encantava ao encostar o rosto no vidro frio da janela para apreciar com gozo o séquito de suas companheiras do céu, as estrelas e o luar, aquela estranha mistura de luz e sombra que se emanava da Lua e o pisca-pisca natural disposto por Deus para iluminar os caminhos e a alegrar nas noites de Lua clara e cheia. Apoiava então com força os dois cotovelos contra a borda interna da janela até quase senti-los doer e ter a sensação de formigamento nas mãos que se dispunham a amparar o rosto iluminado e feliz. Ela até podia não saber muito bem por que, mas noites como aquelas lhe lembravam certas noites de sua infância na cama de seus pais. Há pouco tempo vira também imagens de umas noites semelhantes no cartaz de um filme antigo, todas embebidas naquela aura branca e repleta de brilhos vivos e miçangas móveis como as existentes mais ao norte no hemisfério superior.

E então aquele luar e aquelas noites claras e toda aquela sensação branca e ofuscante de luz davam-lhe uma sensação e uma impressão maior de liberdade. Nessas ocasiões punha-se naturalmente a aspirar com sofreguidão o frio ar noturno e a cobiçar os múltiplos odores da noite como uma loba erguendo as narinas ao vento em busca de sua presa ou como uma feiticeira espargindo com as mãos e com olhares afogueados os seus feitiços de ampla liberdade. Às vezes também percebia ao longe um cheiro forte e adocicado. Era na época das damas-da-noite e aquele cheiro doce lhe proporcionava especial prazer por algum tempo.

Sim, talvez fosse só isso. Tomar deliberadamente em suas próprias mãos e em seu coração todo aquele poder de liberdade doado pelo ar frio e pelo aroma fresco das damas-da-noite. Sim, Mariano fora com certeza uma espécie de bussola para ela, um porto seguro. Pois agora muitas vezes lhe surgia aquela sensação de liberdade extrema e instantânea de que ela poderia e deveria imediatamente tomar as coisas em suas mãos e isso aos poucos já não a assustava tanto. E era então que ela começava a se ver e a sentir como se estivesse perdendo a sua bússola e o seu porto seguro e isso já não apresentasse mais tanta importância assim.

Assim, eram naquelas noites brancas que todas as questões renasciam. Eram naquelas noites radiantes que tudo se tornava mais forte e febril e excitante e exigente com os seus sentidos. Era ali que todas as coisas se reduziam e se refaziam e renasciam doidas e cheias de luz e daquela tão sua conhecida necessidade de seiva de vida e de exigências, como as de seus bebes buscando o suco da vida em seus seios. Então, muito do que havia pensado ou sentido durante o dia se fazia presente naqueles lapsos de tempo, em cada noite e entre o momento em que a mulher se deitava e aquele em que de fato adormecia naquele bosque encantado perdido às margens de um caminho onde havia um rio e uma cascata de águas cristalinas. Então eram agora aquelas noites que se faziam tão difíceis e duras e tão insuportavelmente dolorosas como um parto e iluminadas como se estivesse vivendo de fato as imaginadas noites brancas do norte frio, noites plenas de luz. Fora numa noite assim que ela chegara afinal à absurda idéia de que não mais se deveria chamar Maria das Dores, mas Maria da Luz, Maria do Bom Parto e do Nascimento, nascimento de novas idéias e sentimentos.

E tudo aquilo se reiniciava em cada noite desde o momento mesmo em que mentalmente começava a se preparar para dormir. Aliás, de muito antes de entrar para o banho, talvez ainda mesmo anterior ao instante em que colocava a touca de plástico nos cabelos ou àquele em que se punha a olhar vagarosamente no espelho o seu próprio reflexo esbranquiçado, rosto iluminado como a aura vaga da Lua cheia num céu de abril. Pois que aqueles instantes, apesar do momento difícil que representavam e do que viriam a lhe oferecer, passaram aos poucos a se fazer tão presentes e tão essenciais como se fossem os únicos momentos reais daquela mulher em cada um daqueles dias, momentos fugidios pertencentes apenas a ela e a mais ninguém. Era ali então que Maria das Dores retornava a cada experiência e sensação que sentira no decorrer do dia, trazendo de volta alguns dos pensamentos e sentimentos que a haviam deixado atrelada a ele, como ela se acostumara a dizer. E era então que aquele pensamento e aquele sentimento a tomavam por inteira e a conduziam por escalas de sons e caminhos de luz rumo ao inevitável e estranho jardim das delícias.

4 - Maria da Luz

Certo que Mariano continuava ainda a ser um porto seguro com o acenar de suas mãos firmes e o pressentido gesto da cabeça. Ao menos ainda por algum tempo. Lenta ou radicalmente, entretanto, viria a minha doce Maria a deixar o seu casulo de princesa e a se fazer borboleta de asas ágeis pronta para alçar vôo de flor em flor. Breve ela se descobriria e se despertaria daquele sono cheio de sonhos, ainda que guardasse em si a velha necessidade de ter à vista a lembrança de um porto seguro qualquer, farol iluminando a noite escura do olhar do seu alto mar.

E Mariano e Maria das Dores eram agora dois icebergs muito próximos, às vezes quase se tocando. Mas já apresentavam momentos e formas distintas de ser: uma parte de ambos coexistia de fato sobre as águas e os cobertores e a outra pelejava para abandonar o obscuro leito dos mares, aguardando um momento propício entre o pôr-do-sol e o instante em que a Lua ébria voltasse a bailar no céu!

Ela e Mariano. Para sempre.