O Caso do Juiz Lorde
Uma História quase do tempo de Príncipes e Princesas,
marqueses, condes e lordes d’antanho...
I
Da mesma forma que alguns de nós crêem na força negativa das más línguas, podemos igualmente conceber e ter fé na existência das boas falas e das ações do bem.
Nesse sentido eu até ousaria afirmar que muitas bocas, palavras e memórias chegam a se fazer de fato excelentes e boníssimas ao se referirem a certas pessoas ou fatos. E ainda poderia ir além: que as boas lembranças são muitas vezes o que de melhor podemos deixar para os nossos semelhantes nesta jornada: filhos, netos, a mulher amada, os amigos mais chegados, nossos colegas de trabalho ou simplesmente os conhecidos e desconhecidos do nosso dia-a-dia.
Esta história, por exemplo, veio surgindo vagarosamente entre os dentes e a língua, os lábios, a boca e a boa memória de um servidor à respeito de um seu colega juiz. Afirmou-me inicialmente o referido companheiro que em tempos idos certo juiz presidente da Vara do Trabalho de Almenara era um verdadeiro lorde. Não que outros juízes ou servidores não o fossem e nem o pudessem igualmente ser, mas o fato é que este juiz trazia esta como a sua principal característica: era um companheiro sempre muito digno, discreto, elegante e extremamente agradável na convivência. Em suma, um verdadeiro lorde na educação e no seu jeito de ser.
Mas em verdade não era ele um lorde apenas no sentido usual com que muitas vezes costumamos qualificar as pessoas extremamente polidas e educadas nas artes da vida, da cultura e do relacionamento humano. No presente caso, o referido juiz tornara-se quase que literalmente um lorde no sentido histórico-feudal dessa palavra, posto que no Brasil o cunhado de um lorde poderia com certeza ser igualmente designado sob idêntico título, não é mesmo?
O fato é que uma parenta próxima do referido juiz houvera se casado por aqueles tempos em Londres com um autêntico lorde inglês, como tantas vezes já pudemos ler nas antigas histórias de princesas e príncipes, condes e demais membros da nobreza no passado medieval europeu.
O nosso juiz fora então convidado a participar e a assistir ao dito casamento que se realizou nada mais e nada menos do que no mesmíssimo local onde se deu a cerimônia de núpcias da Princesa Diana e do Príncipe Charles, a famosa Catedral de São Paulo (St Paul's Cathedral), no centro de Londres.
Entretanto, se no casamento da Princesa de Gales certamente iríamos encontrar as mais ricas e conhecidas personalidades masculinas e femininas da Europa ocidental, o casório da parenta do nosso juiz não se deixou ficar para trás.
Eram muitas as amizades e a influência do noivo em terras européias. Além disso, os parentes brasileiros da noiva providenciaram rapidamente os papéis e os documentos para a viagem, bagagens e hospedagem em muitos dos hotéis da Capital da Inglaterra para assistirem a casamento tão principesco.
II
Ao retornar, porém, de sua estadia na Europa, o juiz voltara a sua pacata vida, presidindo diariamente as audiências na Vara do Trabalho. Esta história toma agora outro rumo: vai retratar uma audiência conciliatória ocorrida sob a direção do nosso ilustre e educado juiz após o seu retorno do Reino Unido.
O fato é que em determinada ocasião a sala das audiências no fórum trabalhista de Almenara se achara bastante conturbada. O acordo parecia que ia sair, mas não saía: demorava a pegar, feito o carro velho da Ivete. Quando parecia encontrar um caminho, logo desandava e se perdia novamente do seu destino ou rumo.
Decerto que havia ali a possibilidade de se fechar um acordo. O problema, entretanto, é que parte do pagamento a ser efetuado ao reclamante redundaria em alguns porcos e porcas e não se conseguia chegar a um consenso à respeito do valor dos animais. Como as festas natalinas haviam passado a pouco, o preço dos infelizes animaizinhos despencara estrondosamente e era esse de fato o principal motivo de tanta azáfama e discussão, idas, vindas e voltas ao lugar de origem e ao ponto de partida.
Toda aquela lengalenga, no entanto, acabara por incomodar profundamente o juiz. Então, num determinado momento – e já um tanto irritado, sentimento esse, aliás, que não era muito comum presenciar naquele homem pacífico e educado - ele se dirige carrancudo às partes e advogados e lhes diz:
- Senhores, irei por alguns minutos ao interior da Secretaria para beber um pouco d’água. Solicito-lhes que prossigam na discussão à respeito do acordo e espero que ao retornar a esta sala possam já ter chegado a algum lugar...
Todos os presentes – o reclamante, os prepostos e os advogados das partes – pararam por um segundo o falatório geral para em seguida darem continuidade à discussão e ao bate-boca.
III
Passados alguns minutos, eis que o meritíssimo retorna à sala das audiências. Assim que entrou no recinto ele imediatamente se dirigiu aos presentes. Surgira mais uma vez com o cenho carrancudo e fechado e em uma palavra questionou acerca de um possível acordo já entabulado entre as partes.
Eis que nesse momento, entretanto, levanta-se o reclamante de sua cadeira e – virando-se na direção do juiz – responde-lhe bastante contrariado e com o cenho igualmente franzido:
- Por gentileza, meu senhor: o melhor que tens a fazer nesse momento é se manteres quieto e não te intrometeres mais aqui não. Principalmente que já está tudo resolvido e o acordo praticamente selado. Então eu lhe peço que não venha atrapalhar o que levamos tanto tempo para combinar!
Nesse momento, juiz, partes e procuradores se puseram a se olhar bastante assustados uns para os outros. Via-se que aquele reclamante não conseguira captar nada à respeito da função e da posição do meritíssimo dentro da sala.
Depois dessa reação inesperada, restou ao educado juiz pedir ao datilógrafo que lhe fizesse as honras da casa e concluísse de vez a digitação daquela ata de audiência.
Logo em seguida as partes, advogados e – é claro, o próprio meritíssimo - se despediram e cada um tomou o seu rumo. Iam talvez não “tão felizes para sempre” como é costume acontecer no término das antigas histórias de príncipes e princesas. Porém, devo comentar que aqui também nenhuma abóbora chegara a se transformar em carruagem real.
Mas via-se que alguns sorrisos finos e marotos insistiam em aparecer nos lábios e nos rostos das pessoas ao se recordarem por um momento das palavras daquele reclamante trapalhão.
Entretanto, devemos admitir que hoje em dia mesmo um sorriso desses já representa muita, muitíssima coisa nesses tempos sempre cheios de sons e de fúria...