PICOLÉ DE REVÓLVER

No dia da edição do famigerado AI-5, aos 13 de dezembro de 1968, com uma canetada só do ditador Costa e Silva, os estudantes da Faculdade de Filosofia do Ceará dormiram literalmente sitiados. Aliás, e como também eu estivesse no meio do funil, provando da vigília, nós não dormimos: apenas lá pernoitamos. Claro que apreensivos, todos, porém, para fingirmos calma, puxando modinhas da Música Popular Brasileira.

Como em um aparato de guerra – e hoje é difícil alguém que não viveu sob “os anos de chumbo” acreditar – diversas viaturas do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e outros órgãos paramilitares, evidente que entidades secretas, cheinhas de “olheiros”, à paisana, subiam e desciam a rampa da Luciano Carneiro.

Àquele ápice dos acontecimentos nacionais, ninguém mesmo, no Brasil, ignorava mais a existência de organismos subterrâneos da repressão política e da tortura. Com o SNI no topo, este era subsidiado pelo Centro de Informações do Exército (CIEX). A partir da Operação Bandeirante (Oban), em São Paulo, surgem nos Estados os Departamentos de Ordem Interna (DOIs), subordinados a uma Central de Ordem Interna (CODI). As duas outras forças armadas, também, por sua vez, cada qual possuía o seu próprio setor de espionagem: Centro de Informações da Marinha (CENIMAR) e Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (CISA). E, não bastando toda a parafernália citada, ainda era registrada a presença assassina do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), que executou macabras operações em diversos Estados brasileiros.

Alta madrugada, montado numa bicicleta, um alcaguete pedalava que pedalava, avenida abaixo e avenida acima. O ‘tira’ parava e ia anotando as placas dos carros estacionados na Luciano Carneiro, em frente à saudosa FAFICE. Enquanto isso, as viaturas dos sem-rostos afundavam o asfalto, tantas que eram e tão que trafegavam, sem parar.

Por detrás do muro de porte médio, que fica em frente ao frontão da faculdade (todo o ‘campus’ universitário se resumia aí, pois ainda não havia o atual e gigantesco “Campus do Itaperi”), as pontas das baionetas faiscavam. Da área interna de um quartel fronteiriço, do Exército, clandestinos e ameaçadores, aqueles punhais reluzentes representavam, sob o signo do medo, a sustentação do regime discricionário, imposto ao País, em 1964, ‘manu militari’.

Meio a tudo isso, no ‘front’ de uma guerra silenciosa, ao tempo em que se desenrolava uma seresta bastante expressiva, com aparência de coletiva alegria, logo adiante irei ao lance mais hilariante que, de fato, aqui nos interessa. Mas, paciência, caros amigos, o “causo” só conto depois.

Aconteceu de um companheiro ter que ir levar a casa uma colega e, ao retornar, zapt!, o rapaz foi agarrado à porta da escola. Só teve tempo de estacionar o seu veículo. O Praciano, dos Institutos Básicos, da UFC, fora detido.

Embora ninguém descartasse a possibilidade de uma invasão à privacidade universitária, dentro do casarão, meio às perplexidades e à infernal cantoria de muitos grupinhos, “os subversivos da UNE” forcejavam bom humor e aparente tranquilidade. E a nossa forma condigna de resistência, pelo menos até ali, era a gente cantarolar. A matemática do momento era esta: resistência inversamente proporcional aos atos do arbítrio. E, pois, para que a repressão recebesse a moeda do troco, lá da rua, cantávamos às pampas. Essa atitude alegre e descontraída, talvez por mecanismo subjacente à psicologia social e/ou grupal, não seria para disfarçarmos que não existia o espectro do pavor à sanha da repressão política?

Nas rodas improvisadas, no interior da faculdade, a canção predileta dos confinados era “Camisa listrada”, de Assis Valente. Na música salvadora, há um mote gozador que devia exasperar o mais cínico dedo-duro, ou que fosse reacionário convicto, por acaso infiltrado no meio estudantil. O recado da letra musical diz assim: “Sossega, leão, sossega, leão...”

Contudo, tal eu já fiz antes o galo cantar, o lado da coisa hilária que pretendo aqui fixar, na cachola de todos, é o seguinte. No grupo, estava um camarada nosso, do mesmo curso, extremamente acautelado, e nem diria que fosse medroso. Ele até que poderia chamar-se de Prevenildo, pois muito precatado mesmo.

Manso, que só, o Edílson, que não seria capaz de matar uma pulga que lhe estivesse a picar a ponta do nariz. Porém, por irreflexão ou doideira, lá dele, o gajo portava uma arma de fogo. Ora, mas o moço – pelo que dele ainda hoje sei – é sujeito desses que não atiram nem num passarinho. Em casa, pegou da arma do pai, apenas por pegá-la, e, pá, levou-a consigo. Devia ser ele o único que andava armado de pau de fogo, presente àquela vigília cívico-patriótica. Aperreado, vendo baionetas caladas além-muro e povaréu policial desfilando no asfalto, o que fez o Edílson para safar-se da iminência da prisão?

Sem dizer palavra a ninguém, encaminhou-se à cantina. Aí, sem mais vendedor no recinto, o meu caríssimo colega e amigo embainhou o pau de fogo no congelador da geladeira. Então, mais aliviado, foi deitar-se. Só que, dando de mão com uma escada que dava sopa, no pátio, subiu à laje do teto, sem cobertura de telhas, e lá se ficou, em cama de rei, ao relento, sob o chuvisqueiro lírico do luar.

Ao raiar o dia, todo serenado, já sem o cerco policial-militar, foi que o nosso Prevenildo desceu do trono, ao relento, e foi direto à geladeira pegar o seu bélico doce gelado. Ou seja, o picolé de revólver. Com efeito, a maquininha de vomitar fogo e fumaça estava toda num invólucro de gelo, que parecia um peba, arrancado de um dos polos do Planeta.

Pela boca do próprio, somente mais tarde, soube desse fato. Estávamos, ali, pelos botões das nove, quando, ao pé do meu ouvido, o nosso herói amigo me confidenciou onde se exilara àquela noite fastidiosa e conturbada. Antes, contudo, e por confiança na amizade deste discretíssimo amigo, oficialmente o precatado colega requisitou-me a devida e mais que justa discrição. Ora, pois não, e amigo não é para estas coisas? Por isso que, por nada deste mundo, a ninguém eu forneço a identidade completa do meu prezado Prevenildo.

Fort., 21/12/2009.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 21/12/2009
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