SEU JOÃO ROUCO

Bebi uma golada, a cerveja estava de quebrar os dentes. Não decifrei direito foi porque o simples gesto da degustação lembrou-me as barbas ralas do Seu João Rouco. Rouco porque, de fato, era fanho. Fanhoso por acidente, donde a oficialização do apelido carimbado pelo Pedro Paulo.

Acho que o coroa se me escanchou na lembrança foi por causa de um pequeno detalhe, detalhe lá dele. Todos que o aguardem, aí na esquina do logo-mais, que o terminho “detalhe” canta de galicismo; porém, às vezes, ele me ataca de fossa, no plural, daí quando associo a palavra esnobe ao musicão do “Rei”, aquela famigerada cantiga “Detalhes”, modinha de nos encher de festa a tampa das orelhas.

Figurinha longínqua dos meus verdes bocejos de menino, quando vivendo no Monte Castelo, bairro classe média (média) de Fortaleza. E Seu João Rouco, sem nem pedir licença de alvará, vem-me assim, muito enxerido, e bateu-me na tábua da memória, de supetão. Veio-me o gajo, de vez, sem a menor cerimônia.

E, logo ali, na emborcada do meu drinque dominical? Lept!, e coisa e tal, sem quê nem para quê, lá se me surge a silhueta do meu ex-vizinho, de casa própria, aposentadoria no papel, pois servira na Light, contudo ainda militando na ativa. E empunhando porrete de vigia amador, coisa para “fazer bico”. O homem apareceu-me, hoje, de gaiato, como visagem saída do baú do esquecimento.

Então era só ele regressar da vigilância noturna e, já cedinho, enquanto o povaréu comprava pães e leite, Seu João Rouco, casaco surrado e de jucá fornido à mão, vinha à mercearia, lá de casa, em ritual de abertura matinal. Vinha seco para tomar o seu cafezinho inicial do dia. Claro que café nenhum, nem ali se vendia café passado, mas era para passar para dentro uma bela e avultada lapada de cachaça. Cumprida esta fisiológica missão, qual seja a de beber a prima abrideira, depois é que ia bater com o porrete para a Rita, sua segunda mulher, abrir-lhe a droga de porta.

Ora, mas o detalhe, e todos hão de convir, não repousava nem cochilava na porta. E nem no jeitão fogoso da companheira, ainda nova e aproveitável. Também a coisa não caía bem só nas paqueradas – dizia o pessoal – que Seu Pipiu jogava na mulher, à noitinha, lá de cima do murinho baixo da quitanda, o qual lhe servia de assento, toda noite. Ah, mas esse Seu Pipiu, feito atalaia, com os grãos plantados no muro, era discreto, a mansidão em pessoa. Um come-quieto. Só que botava, sim, olhares compridos em direção às bandas da Rita de Seu João Rouco. Ela, uma figura ainda nova e de bastante fulgor no gume do olhar.

Vocês já devem andar, aí, às voltas com o enigma do galicismo “detalhe”, de que já lhes falei atrás, lá no topo do antes. Curiosidade açodada, esta de vocês, meu caro leitorado. É ter paciência de Jó, aquele camarada bíblico, e eu sei lá se isto é vero. Mania eu tenho sempre de contar, ainda quando nem é conto, e com certos miúdos detalhes, qualquer fio de conversa de memorialista besta.

Ih, mas estando Seu João Rouco de pé, antes e depois do soninho diurno, madorna de carregação, difícil era flagrar a peça de gente fora das suas funções de um amante etílico. Ou seja, quero me expressar direito, sem que ele ingerisse as infalíveis cachacinhas do quotidiano velho. E aí, justo neste ponto, dos bebes & bebes, é que a coisa do galicismo do “detalhe” se dava no terreno dos dois campos sensoriais, o básico: ver e ouvir.

Nariz meio aquilino e de barba rala, sempre por fazer, meu herói-personagem (o apelido desta feita não fora obra do Orlando, de Seu Manuelzão, que perdera a concorrência para o PP); meu herói-personagem – eu ia dizendo – tinha por costume meter todo o conteúdo, e por inteiro, do bom copo de pinga na barriga da boca. Isto era uma religião lá dele. Sempre com o copo cheio, Seu João Rouco não engolia a preciosa água que passarinho não bebe, como todo mundo, gole por gole. Não. Primeiro ele enfiava o líquido na furna do céu da boca, dilatando bem as bochechas, depois é que deglutia a danada. Então, sim, ele não engolia o bom-bocado, de pronto. Aí que morava o intruso do tal galicismo: o “detalhe”.

Seu João Rouco, antes de passar para dentro o engasga-gato, fazia charme. Dilatava mais ainda as bochechas, já feitas um balão, e chacoalhava o quebra-goela. Aí, pois não, a tira-teimas descia redondo. Técnica 'sui generis', muito peculiar. Nunca ninguém fizera assim. Ele emborcava o mata-bicho completo, ia dilatando bochechas, aos poucos, sentindo o prazer, na bocarra, até que as maçãs do rosto se arredondavam. Viche!, eu achava aquilo uma pose bonita e boa de a gente apreciar. Quem é que sabia ou fazia igual aquela novidade? Duvido que, em algum lugar, existisse um seu precursor, na freguesia do Senhor do Bonfim.

Em seu ritual de bebericador inveterado, o vigia noturno, aposentado da Light, por consequência com direitos à cidadania, sacolejava a porção na gruta dos dentes com uns movimentos dos maxilares, tomava gosto bem fundo e animalizava um interminável “aaaahhhh!” Era um ruído tão descomunal que só ele mesmo devia ter ensaiado no teatro da vida para não dar um branco no palco do balcão, ao que, com toda a dignidade de brasileiro e nordestino, após a ingestão da homeopatia, Seu João Rouco detonava seu mais veemente e subversivo protesto de um economista camuflado, um economista, sim, em potencial:

“– Não tem dinheiro que chegue!”

Depois, daí, duplamente se expressando, quer dizer, todo o povaréu dos pães a vê-lo e a ouvi-lo, um Seu João Rouco renovado, todo ancho e feliz e sem nem cuspir, era que o useiro e vezeiro do cu-de-jegue matinal saía muito cangueiro para casa. E, sem relaxar nunca, antes de ferrar no sono, batia boca com a amásia fogosa, ela bem mais nova do que ele.

Fort., 13/11/2009.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 13/12/2009
Código do texto: T1975732
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.