O Mirabolante Encontro de Tio Firmino Com o Anjo da Morte (versão completa)
“Pois a seus anjos Deus dará um encargo
especial quanto a ti: que te guardem
em todos os teus caminhos”
Salmo 91:11
I
Senhores e – principalmente – gentis Senhoras e formosas Senhoritas: antes que dêem início à leitura dessa mirabolante narrativa, convém que eu lhes proponha duas questões de fundamental importância no desvendamento de toda essa trama.
São elas aquelas mesmas e velhas perguntas com as quais cada um de nós terá que se haver num momento ou noutro da vida, ainda que pressinta às vezes que não encontrará para elas uma resposta mais satisfatória ou definitiva. Ei-las então: o que vem a ser isto a que chamais "verdade"? Haverá alguém que poderá de fato se julgar seu legítimo e único proprietário?
O provável nessas questões é que talvez a verdade nada mais seja do que tudo aquilo em que acreditamos, cada qual do seu modo e de uma maneira muito particular.
Por enquanto, porém, peço-lhes que deixem de lado essas questões cheias de minúcias e se entreguem à leitura da história que se segue.
II
O fato é que desde que me entendo por gente que eu ouço tio Firmino afirmar que já fora muito bom em certas coisas. Citava como exemplos alguns prazeres e afazeres de que mais gostava e se orgulhava em sua vida: aquele jeito sério de balançar o corpanzil enquanto desfilava de braços dados com tia Augusta pelas ruas da nossa comunidade; o toque sutil de umas mãos masculinas na cintura elegante de uma dama bem conduzida numa pista de dança; o sapateado no pé e um pandeiro nas mãos de um artista do samba; e, finalmente, o gingado da capoeira em terreiro de umbanda.
No entanto - disse-me ele certa vez num particular particularíssimo que então tivemos - como sabes, fui de fato muito bom em tudo isso que lhe falei, mas mestre mesmo eu me tornei foi nas artes do amor e da malandragem. Foi nesses dois ramos do conhecimento que acabei me fazendo especialista e onde logrei conquistar o reconhecimento e o prestígio que carrego até hoje.
Vede o leitor que além de se considerar um mestre naquelas referidas artes, tio Firmino trazia ainda em si uns rasgos de homem culto e letrado: gostava de citar certos autores que lera na juventude e criar suas próprias frases de efeito moral.
Não foram poucas as vezes em que – ao se referir à malandragem – dissera:
- Ela é a mãe de todas as artes – adorável sobrinho - assim como a preguiça é a madrasta de uma série de evoluções que aparentemente surgem do nada e alteram variados aspectos na vida das pessoas. E – creia-me você ou não! - não raro terão sido essas zelosas donzelas quem hão de ter dado impulso a muitos dos grandes engenhos empreendidos pelo espírito humano...
Tio Firmino sempre fizera questão de destacar o seu entendimento à respeito de conceito tão controvertido. Para ele a malandragem era um dom e o malandro era o sujeito que se aproveitava da boa fé ou da inocência de seus semelhantes para pregar-lhes uma peça ou obter uma vantagem qualquer. Entretanto, o limite até o qual ia o malandro na obtenção de seus objetivos era aquele em que o indivíduo ludibriado chegava a se sentir o mais tolo possível no momento exato em que se punha a refletir sobre como pudera se deixar enganar com tamanha facilidade.
Mas - como já sabeis! – meu tio não fora apenas este malandro de que vos falo. Fora ainda um grande namorador, um amante magistral e romântico. Ilustrarei tal romantismo apontando duas situações que muito esclarecerão porque as maneiras de tio Firmino tanto agradavam as mulheres.
Com elas meu tio era de um capricho e uma delicadeza sem iguais. Lembro-me que em algumas ocasiões fiquei a observá-lo no trato com minha tia Augusta ou com alguma de suas antigas namoradas.
A impressão que eu tinha naqueles momentos era a de que tio Firmino como que conseguia por um encantamento ou mágica fazer com que sua amada se sentisse alçada muito para além do solo demasiado humano da realidade. Uma de suas mãos erguia com maestria a sua companheira – que no presente caso estaria representada pelos cento e treze quilos de minha tia Augusta – até um reino de sonhos e fantasias, enquanto que com a outra retirava caprichosamente do bolso da calça um velho lenço de cambraia e punha-se a espanar qualquer possível grão de poeira que acaso tivesse se acumulado sobre a cadeira à qual convidara sua dama a descansar por um momento.
Outro ponto curioso era que - embora não tivesse formação em nenhum curso de graduação superior – tornara-se costume de meu tio apresentar-se da seguinte forma ao lidar com o belo sexo:
- Dr. José Firmino Amoroso da Conceição Dantas à inteira disposição de Vossa Senhoria, dizia o homem cheio de dengo.
Tio Firmino considerava de uma beleza insensata tanto o seu primeiro nome quanto o sobrenome “Amoroso”. Este último era o que lhe dava maior prazer. Dizia ele estar exatamente ali a prova cabal de que fora predestinado às finas artes do amor. Afinal, amoroso era o seu nome e era também como se sentia ao lidar com a parcela perfumada da humanidade. “E Amoroso” – prosseguia ele – “era como continuaria a ser pelos tempos afora, mesmo após ter-se unido em núpcias com minha tia”.
Devo comentar que nessa época eu ainda acreditava que um dia poderia me fazer igual ao meu tio em relação as suas maneiras no trato das senhoras e senhoritas. Mais tarde, porém - com o passar dos anos a gente certamente vai aprendendo um bocado de coisas úteis e inúteis pela vida afora! - conclui que aquilo não se adquiria nem se aprendia: era mesmo uma espécie de dom ou predestinação.
Já em relação à arte da malandragem, posso afirmar que só uma vez percebi em tio Firmino certo temor diante de um acontecimento muito especial e a partir do qual viria ele a realizar profundas alterações em seu jeito de ser e no seu estilo de vida.
Entretanto, tudo isso só veio de fato a ser esclarecido alguns dias atrás após longa conversa que então tivemos. Vou lhes contar tudo o que aconteceu na intenção de que o presente relato sirva como lição de vida ou expectativa de que cada um de nós pode em verdade proceder a importantes mudanças em si mesmo.
III
A primeira coisa que meu tio me disse foi que sua “conversão” se dera em virtude de sua própria morte. Assustei-me com tão fúnebre palavreado e me pus a observá-lo. Buscava encontrar no seu rosto um indício qualquer de galhofa ou o brilho característico da loucura. Cheguei ainda a imaginar por um momento uma terceira possibilidade: seria possível que eu me encontrasse diante do fantasma de tio Firmino?!
Conclui que não: tão certo quanto dois e dois são quatro era que meu tio se achava em carne e osso e vivinho da silva diante da minha pessoa! Talvez se apresentasse com um tanto mais de carnes que o habitual, mas não restavam dúvidas de que era ele!
- Decerto - prosseguiu tio Firmino – decerto que não cheguei mesmo a bater as botas nem a cachuleta. Mas vede que às vezes é meio complicado separar o joio do trigo ou distinguir a verdade das ilusões e da mentira: estive de fato e frente a frente com a impiedosa, a dita cuja, aquela-que-nos-leva-de-vez-e-pra-sempre-numa-viagem-sem-volta. E hoje - meu simpático sobrinho – se aqui estamos um diante do outro mantendo essa conversa descontraída e trivial, devo isso ou a um capricho do destino ou ao acaso da minha boa sorte.
- Mas tio – perguntei diante daquele palavrório cheio de voltas, idas e vindas de que ele se utilizava quando conversava com alguém – diga logo o que aconteceu!
- Devo emendar que aquela foi a ocasião em que mais senti medo em toda a minha existência. E afirmo sem nenhum pudor nem receio d’alma que tremi da cabeça aos pés e cheguei até mesmo a molhar a calça e as roupas de baixo.
- Que tristeza, meu tio! Mas continue, continue por favor, solicitei.
- Então eu vou te contar tudo tal qual aconteceu deveras: alguns anos atrás, na época em que eu ainda ostentava com orgulho e garbo os títulos de grande namorador e maior dos malandros, quis o sábio destino que numa de minhas aventuras amorosas viesse a topar nada mais nada menos que com a Morte, com aquela-que-nos-abraça-e-não-nos-larga, a que-surge-depois-da-luz-no-fim-do-túnel e não-perdoa-nem-volta-atrás-em-suas-decisões. Isto mesmo! Só que ela não se mostrou da maneira como usualmente a vemos representada tanto na literatura quanto na pintura dos grandes mestres. Refiro-me àquela tenebrosa figura que muito nos assustou quando crianças: uma caveira envolta em capa negra e esvoaçante, segurando numa das mãos uma ameaçadora foice de cortante material metálico. Muito ao contrário: a Morte me surgiu da maneira mais formosa que tu possas imaginar. Veio transvestida com o semblante e o corpo de uma das mais belas mulheres a quem já tive o prazer de conhecer. Posso lhe garantir - meu adorável sobrinho - aquela morena mais parecia um anjo esculpido pelas mãos de Deus no mármore da eternidade.
- E ai?
- E ai?! Bem - como disse anteriormente – apesar de sua bela roupagem corporal, a tal Dona se apresentara a mim sob o codinome da Morte. Dizem, no entanto, que a enxovalhada às vezes se disfarça mesmo na pele de uma beldade com o objetivo de enganar àqueles a quem a beleza física representa o ponto fraco. Imagino ter sido este então o caso que se deu com a minha ilustre pessoa.
- E então, o que houve em seguida?
- Logo nos primeiros momentos – quando tudo parecia ir às mil maravilhas – a maldita abriu seu verbo de fogo e se revelou. Fiquei sem voz na garganta nem pernas pra correr. Meus joelhos dobraram-se como varas verdes e as mãos suavam tanto que era possível colher dois ou três copos em poucos segundos. Então, quando ela afirmou que viera com o único objetivo de me levar de vez naquela viagem-sem-volta, foi ai que eu encharquei as calças. O fato é que naquele momento eu só sabia clamar por Jesus e Nossa Senhora e São José e Maria Santíssima e mais um bocado de nomes de santos e santas que me acudiram à mente. E solicitei ainda humildemente àquela terrível dama que me permitisse continuar vivendo. E, afinal - meu idolatrado sobrinho – chorei feito criança. Você precisava ver. Nunca em minha vida havia derramado tantas e tão suspirosas lágrimas. Pense bem: eu era jovem e ainda tinha muito o que viver...
- E então? E então?
- Bem, não sei mesmo qual terá sido o motivo ou a razão que afinal tenha abrandado o coração da empesteada. Mas o fato foi que aquela que-põe-ponto-final-em-todas-as-nossas-dívidas pareceu mesmo ter sentido um bocado de dó dessa alma perdida que vos fala. Virou-se na minha direção e me afiançou o prazo de alguns dias para que ou eu me emendasse daquela vida de amores vadios – assim como do mau hábito da enganação e ludibrio de meus semelhantes - ou então seria sumariamente transferido para um terrível-lugar-donde-ninguém-jamais-voltou.
- Jesus e Maria Santíssima, piedade!
- Piedoso sobrinho: devo confessar-lhe que nesse ponto fiquei meio que sem entender mesmo a coisa toda. Se a tal era de fato a morte gulosa e viera com o único fito de me levar de vez com ela num trágico passeio de ida sem volta, que diacho de nova oportunidade era aquela que a infeliz vinha agora me conceder? Olhe que naquele momento tive até uma ligeira desconfiança que mais tarde lhe vou revelar! Mas a realidade fora que a alegria e a felicidade oriundas daquela nova chance superaram em muito qualquer suspeita que eu então pudesse ter. Assim – como nessa época eu já andava meio enrabichado por sua tia Augusta – nem pestanejei. Aproveitei a oportunidade, anunciei o casamento e juntei de uma vez por todas a minha escova-de-dentes à dela. E – devo confessar novamente – o dia do meu casório foi na ordem de importância o segundo dia mais feliz de toda a minha existência. Depois – é claro! - daquele em que aquela temível criatura me presenteara com uma oportunidade novinha-novinha de construir tudo de novo e de um jeito diferente.
IV
Dias depois tio Firmino me revelaria o teor de sua desconfiança. Tivera naquela ocasião o pressentimento de que a belíssima jovem que tanto o encantara e que ao mesmo tempo se apresentara sob o terrível apelido da Morte, talvez não fosse em verdade nem uma coisa nem outra, mas um anjo, um ser de luz e encantamento destinado por Deus a protegê-lo e a transformar completamente a sua vida.
- Porém – remendou ele - malandro que é malandro sabe a hora certa de por as barbas de molho e esperar a poeira baixar. Apesar de todo o medo que senti, “aquilo” não me pareceu mesmo ser a infeliz-que-nos-leva-distraídos-num-passeio-sem-volta! Ao contrário: sua aparência era a de uma donzela viçosa e cheia de vida. E saiba você que para mim a mulher é de fato – e dentre todos os seres da divina criação - aquele que mais se aproxima da perfeição dos Anjos do Senhor. Então – tratando tudo isso como uma simples equação matemática – conclui que aquele ser iluminado se transmutara de fato diante da minha pessoa utilizando-se do invólucro carnal daquela bela senhorita. Agora, se anjo tem ou não tem sexo e se essa referida classe celestial se divide de fato entre anjos femininos e anjos masculinos, isso já é outro problema! Mas que aquela anjinha era um pedaço de mau caminho, lá isso era...!
Com essas palavras tio Firmino pusera fim a sua narrativa.
V
De tudo o que foi dito e escrito até o presente momento, restaram-me duas verdades da maior importância. A primeira delas fora a certeza de que tio Firmino podia até não ter conseguido enganar de vez aquela-que-liquida-todas-as-contas como ocorre na maior parte das histórias de enganar a morte. Mas produzira algo muito especial e interessante: conseguira - através da finíssima arte de sua malandragem - entabular um pacto com um Anjo de Deus e é essa de fato a grande novidade dessa história.
Outro ponto: se no final das contas esse relato contiver uma quantidade razoável de verdades, meias-verdades e uns tantos e vagos pressentimentos, posso finalmente concluir com absoluta segurança ser igualmente possível que nesse exato momento e num canto qualquer do paraíso uma anjinha muito sapeca esteja soltando boas gargalhadas ao saber do término de toda essa lenga-lenga. E que ainda agora possa ela estar se molhando toda de tanto rir, feito acontecera com tio Firmino naquela fatídica ocasião.
Se assim for, que assim seja! E que Deus abençoe cada um de nós e suas verdades nessa jornada recheada de som e de fúria sobre esse pequeno mundo!