CAPRICHO NOS ERRES
Embora estropiado de língua, grogue de voz, confesso meu fascínio pelo rádio e pelas velhas irradiadoras. Em particular, o rádio é um já velho invento muito versátil, mas tremendo meio de comunicação. E novidade antiga das mais importantes, entre os demais e atuais meios de comunicação de massa, a ‘mass media’ dos gringos. Pelo rádio, agora falando do receptor, o mundo chega até nós num vapt-vupt. Quero dizer, bem rapidinho. Claro que todos me compreendem, numa boa.
Nunca descobri se a minha queda pelo rádio me nasceu desde o berço – corrijo, desde o fiango cearense –, ou se foi inclinação contraída, como caxumba ou sarampo. Se arriscasse palpite, diria que foi mesmo coisa motivada. Deve ter sido mania pegada por meio de sopro, sim, talvez pelas sucessivas audições obesas das irradiadoras – que a gente chamava “radiadoras” – e também pelas quermesses que povoaram minha meninice.
A princípio, quermesses lá na Serrinha, que, atualmente, é Guaci, um pedacinho de vilarejo trepado lá numa serra de Redenção. Redenção, a que primeiro deu carta de alforria aos escravos, no Brasil, município este que se situa bem ali, acima da covinha do pescoço de Fortaleza. Faziam-se aí – esclareço melhor, na Serrinha – essas festas anualmente, sob os auspícios da Igreja, cuja padroeira, se me lembro, é Nossa Senhora de Lourdes.
Eu ansiava por que tudo aquilo voltasse à vila umas dez vezes por ano. Eram muito bem-vindas as “festanças de igreja” do venerável padre Bezerra de Meneses, a quem eu dava a bênção duzentas vezes que ele, a cavalo, cruzasse os caminhos do Camará. E, nas comemorações à padroeira, havia sempre a indefectível disputa entre os dois únicos partidos: o Azul e o Encarnado. Mas este escriba, aqui, desde miúdo, já torcia pela facção do Partido Encarnado. Esta me foi uma tendência nata, desde bicho miúdo. Ainda hoje, onde houver quermesse, vou punir pelo Encarnado.
Mais tarde, vieram outras quermesses à minha paisagem, todas devidamente aparelhadas com o som das irradiadoras: quermesses de Redenção, Aracoiaba, Fortaleza. Só que, aqui, na “Loira Desposada do Sol”, eu já era grandão. Penso que assisti a umas dessas diversões, também, no Canadá (sítio de meu tio, munido de capelinha bem arrumada). Tudo aquilo eram folguedos e alegria, ao vozeio e paleios da irradiadora, ou amplificadora, como também a apelidavam os locutores.
Bonito para valer, nas audições das quermesses tanto do interior quanto da Capital, era o tom açucarado do vozeirão cheio de erres do sujeito que emitia as mensagens. Ih, o comandante-em-chefe do som retorcia erres pelas bordas da boca que as palavras saiam em formato de parafusos.
– Alôoorrr, alôoorrr, muita atençãaao! – fazia a voz, pondo todo mundo na escuta. – Alôoorrr, senhorinha de inicial R, que está trajando blusa verde e de cabelo longo! Esta música que segue quem lhe oferece, com carinho, é certa pessoa que muito lhe admira e estima. Mas só não diz o nome, no ar, para nãaaao causaaarrr confusão.
E a música, em geral modinha derramada de termos amorosos, esvaía-se em paixões pelas amplidões da Serrinha. Nélson Gonçalves tinha a preferência, quase unânime, no rodar dos sambas-canção. Anísio Silva era outro bastante tocado. As vozes femininas pendiam para Dalva de Oliveira e Ângela Maria. Outras vezes, com o bairrismo nordestino à pele, tocava-se o Luiz Gonzaga. Mas o Nélson era sempre o piquenique preferido nas oiças das cunhãs namoradeiras que davam o ar de sua graça no recinto colorido das quermesses.
Uma vez, com mistério e suspense, o locutor interrompeu bruscamente a gravação do surrado LP de cera e esfuziou aquele seu apelo, lá dele, cheio de melosas dúvidas e bombásticas emoções:
– Atençãaao, M. R. Atençãaao, muita atençãaao, senhorita M. R! Alôoorrr, alôoorrr, jovem senhorinha com letras inicias M. R! É o J. X., daqui mesmo de Serrinha, aquele que lhe dedica com amizade sincera e muito carinho esta bela página musical. Ele só não revela o nome, no momento, para não causaaarrr confusão!...
Numa indiscrição, dias depois, o locutor da irradiadora bateu com a língua nos dentes, fofocou na bodega de Seu Dentinho que J. X., na verdade, o pagante daquela veemente mensagem tão apaixonada para a donzela M. R., fora o João Chofer. E aí houve matuto letrado que caiu na gaitada. Besteira do zé-povinho, que J. X., para o governo de todos, na mentalidade do locutor bisbilhoteiro, também eram inicias muito sonoras e faziam sentido, pois, em tradução livre, queriam significar João Xofer. E por que não?
Belas e folclóricas locuções, para não dizer muito saudosas, aquelas eloquentes elocuções dos tempos lindos das quermesses. Como não me hei de ter amarrado na sonoridade da voz humana, ainda mais na cadência dos vozeirões de Nélson, Anísio Silva e Dalva de Oliveira? Até hoje, com toda fé de verdade, eu me grudo nos erres da comunicação estilizada, que locutor de irradiadora é que sabia adoçar, impostar e chacoalhar bem a voz. Aquilo é que era capricho nos erres. A linguagem, gorda, muito obesa de erres, ficava mais chã e preciosa. E coloria melhor e azeitava mais o nosso dialeto matutês.
Fort., 22/11/2009.