FIAT LUX
Sei de uma aparentada (hoje, 2009, falecida) que, mês a mês, segundo a própria, cultivava o hábito de fazer visitas a doentes nos hospitais. Professora da Bioquímica, e disto ela fazia profissão, talvez só pelo prazer de sentir o olor dos remédios, ou por promessa, quem sabe, talvez até por religiosidade lá dela, o fato é que, a intervalos, a mulher metia-se pela prisão das enfermarias à cata de uma prosa de filantropia com pacientes absolutamente desconhecidos. Pessoalmente – posso errar feio – acho esse gesto de visitar doentes muito mais útil e bonito que viver, no oratório, a bater com os queixos e com um rosário à mão.
Nos jornais e nos livros, tenho lido cartas, crônicas e notas autobiográficas de pessoas que confessam ter-se atirado de casa para ir olhar macacos, no zoo; ou contemplar igrejas antigas, galerias de arte e museus; ou desfilar de carrossel, às tardinhas, à beira-mar; ou excursionar em grutas e ruínas históricas; ou assistir à última fita cinematográfica premiada com o Oscar; então comer pipocas, jogando conversa fora, lá por algum desvão do ‘shopping’, nas inocentes manhãs de domingo.
Agora, para não ser faltoso à verdade, até este instante, ainda não me ocorreu de engomar os olhos nalgum alfarrábio alheio que narrasse ou descrevesse a ida de alguém a uma casa de saúde, a fim de abraçar e alentar um amigo, ou simples conhecido ou afim, estando estes gajos submetidos ao leito do internato hospitalar. Isto a gente só vê pelas imagens da televisão, fazendo-se mídia e média com figurões da politicalha, sobretudo às vésperas das eleições.
Embora avesso à mania da contraparente bioquímica, e solidário só por dentro, pois num dia meio gris de 1993, constrangido, enfiei-me por um escaldante corredor de hospital, o velho IJF, de Fortaleza. Fui a cavalo nas árduas funções de visitar pessoa amiga. Constrangido, repito, e com o coração grosso, ver granito fossilizado. Duplamente chateado por eu ter que ir lá à cama onde convalescia aquela tão boa amizade de trabalho, a qual sofrera queimaduras nos três graus. Uma fatalidade a lamentar.
Constatei que a prezada colega andara gravemente se acidentando, de fato, numa explosão casual, com álcool. Mas, logo onde ela se encontrava, a minha visitada? Justo no hospital que me acolhera, anos atrás, quando sobrevivi a três capotadas de um veículo, com certeza um sinistro de vulto.
Na presença da amiga, com vidraça no meio, logo me vieram à retina algumas incômodas imagens de filminho já por mim vivenciado: quarenta dias na desolação de um leito, o membro superior direito metido numa tala, ou calha. Parece que uma coisa destas é também a outra. Refeito da fratura exposta, hoje respiro como “sobrevivente de guerra”. E, sobretudo, mercê de mãozinha milagreira, a sacrossanta mão do insigne traumatologista Agripino Magalhães, médico de excelsa nomeada e filho relevante da banda dos Inhamuns, no tórrido sertão central cearense.
Finda a minha visitinha de hora redonda, a muito doída visita que me competia, como pedaço de dever solidário – antes, durante e até pouco depois –, eu não estive isento de um nódulo chato no gogó e de um chuviscar camuflado de verão no rabo do olho. Através da vidraça, e por causa disto, declaro que, também, muito, eu alimentava grandes esperanças de que a Inês se recupere logo, logo. E vai recuperar-se plenamente – isto foi o que saí matutando, pé após pé, ao fim do toque suave da sirena.
Dito e feito. A garota recuperou-se bem, mercê da mão dos céus, da química farmacêutica, do ácido pícrico, do desvelo das enfermeiras e do bisturi dos esculápios que a assistiram. Também por conta dos imensos desejos de pronta cura da saúde da moça, advindos dos rogos das centenas de seus amigos, parentes e familiares. Eia, axé, e FIAT LUX, camarada! E a luz da regeneração foi feita, felizmente, quase sem sequelas notáveis.
Fort., 17/11/2009.