Pequeno excerto sem moral e sem vergonha
As luzes apagaram-se, todas.
Em um segundo, o brilho constelar das gigantes metrópoles do planeta se extinguiu. Apenas os faróis dos carros arrancavam as ruas modernamente asfaltadas e habitadas por meninos e mendigos do modorrento e primitivo breu. De resto, apenas escuridão e alguns prédios, células isoladas de autossobrevivência, abastecidos por seus potentes geradores a diesel.
As casas que pendiam dos morros e costumavam brilhar como luzes de natal, apagaram-se também. Passaram de marginalizadas para extensões de edifícios verticais. Não se diferenciavam mais casebres ou casas.
Nos aviões, os passageiros olhavam para baixo incrédulos, as cicatrizes da modernidade pareciam desaparecer da pele do mundo. Como um incêndio se apagando em milésimos de segundo. Ali onde estavam, há quilômetros de altitude, não havia diferença entre céu e terra. Eram apenas 2 maças escuras e silenciosas. Bem aventurados os pilotos, que dispunham ainda de meios de não se perderem no escuro. Apesar do receio de um choque ser constante, visto que a comunicação com as torres também fora cortada.
Os semáforos, usuais aquarelas, desapareceram na escuridão da noite nublada. E os carros não eram guiados por nada mais que o instinto cego de seus motoristas: trabalhadores a voltar para casa, prontos para gritar aos quatro ventos a ineficiência do governo e da gestão em geral, no que diz respeito à distribuição elétrica.
Em algumas horas o caos se instaurou completamente. As operadoras de telefonia congestionaram, e o homem voltou a ser incomunicável. O desespero de não enxergar tomava conta das casas e apartamentos. O cidadão comum só sabia esperar, impaciente e calado, que a energia se restabelecesse.
Os especialistas, trabalhando em plantão durante a noite, se perguntavam como um país com tantas usinas podia ainda não ter dado conta de devolver a luz aos seus habitantes. Culpavam o governo, culpavam hackers. Os mais exagerados culpavam o modo de vida de uma sociedade consumista. Mas o fato é que ninguém sabia o motivo da pane total da distribuição elétrica mundial. Mais precisamente, ninguém sabia que a crise era generalizada.
Afortunados os orientais, que estavam no meio do dia.
Os geradores hospitalares começaram a fraquejar e a morte começou a rondar os leitos dos mais dependentes de monitoramento eletrônico. Os médicos esbravejavam, desesperados, os parentes de enfermos choravam. Todos sem enxergar.
O crime organizado começou a disparar para o alto. As rajadas pulsantes no ar eram o sinal de que ninguém estaria em paz. Logo começaram os assaltos, as mortes. A polícia não tinha a mesma organização. Facções rivais aproveitaram o momento para batalharem. Mortos de ambos os lados. Mortos que não tinham nenhum lado também.
Só quando a manhã começou a chegar e a luz das casas também, que a ordem começou a se restabelecer. O morador de um prédio, possesso por ter perdido um de seus aparelhos televisores em um dos picos de luz da noite anterior, saía de casa muito irritado, quando viu um vizinho seu extremamente desapontado. O vizinho era um tipo de homem introspectivo que morava sozinho em sua casa e não tinha muitas coisas para serem danificadas com a falta de luz.
Curioso, o homem do televisor perguntou-lhe o que tinha ocorrido.
- Eu tive esperança que a luz não fosse mais voltar.
O morador prejudicado reclamou.
- Como você queria que não tivéssemos luz? Você é louco?! Nada funciona sem luz...
Calmo e ainda decepcionado o vizinho prosseguiu.
- Ei, nós já vivemos no escuro. Pelo menos era um jeito das pessoas entenderem isso.