FIGURA QUE PEDE BIS

Ao pé do balcão de meu pai foi que a conheci, tomando pinga, sendo cordial e voltando loguinho para botar sentido nas panelas da cozinha que ela administrava, localizada na rua posterior. Alhures, já lhe botei causo, uma vez. Mas é figura que pede bis. Assim, vou reprisá-la com palavreado novo.

Baixinha, roliça de corpo e levemente rechonchuda, de cor branca e rosada, avizinhava-se já à meia-idade. Bebia cana que só timbu, mas não fumava. Não era uma feiura integral, contudo portava nos seios nada menos que duas avantajadas dunas, cada qual por acolá, como se um cevado Everest. Na verdade, o debuxo de uma – corrijo – de duas cumeeiras.

Por tudo isso, na certa, ganhara o jocoso apelido: Vaca Mococa. Não sei se ainda circula na praça, todavia uma empresa do ramo vendia um tipo de leite cuja marca era precisamente esta – Leite Mococa. E, no rótulo, havia lá uma vaquinha holandesa vicejante e exuberante, de úberes deveras apaideguados.

Um número, a nossa personagem. Era da passarela de prendas domésticas, no bairro, havia muitos anos, a distinta Vaca Mococa. Só que jamais ousei assim chamá-la. Suponho que quem a carimbou com o codinome foi o Orlando, filho do Seu Manuelzão, um gajo célebre em registrar e pôr marcas e logotipos notáveis nas pessoas. Carimbos botados pelo Orlando eram tiro e queda: pegavam como capim-de-burro, em quadra invernosa.

Com relação ao cartaz da Mococa, no entanto, ninguém lhe detratava a honorabilidade, e duvido que o fizessem, que era “secretária do lar” da casa de Seu Leitão. Até, pela unanimidade que a conhecia, era tida, vista e havida como “moça donzela”. A companhia de uma família admirada e respeitada auferia-lhe um status e a garantia de um cartaz irretorquível. Ou seja, sobretudo a fama da virgindade, que se nos apresentava ainda como um tabu esplêndido da época, ali pelas corcundas dos anos sessenta.

Escanchada, pois, na montaria da notoriedade de continuar “inédita”, quero dizer, um cabaço – como rezava o pessoal – e mais ainda tendo cama estabelecida no quartinho dos fundos da jurisdição do lar dos Leitões, que eram tidos e havidos como gente proba e de boa linhagem, a nossa popular heroína costumava pôr tempero no hábito de ingerir, aqui e acolá, no quotidiano da vida, uns tragos de água-que-passarinho-não-bebe.

A Vaca Mococa matava o bicho que era uma beleza. E, para manter o siso, nem sequer estirava a língua numa cuspida. Também não era mulher de fazer careta, após a ingestão de qualquer trago duplo da branquinha. Claro que, às vezes, saltava-lhe ao copo era uma talagada da amarelinha.

Tomava da pura, entre uma mexida nas panelas e dois dedos de prosa, debruçada no patamar do balcão do comércio, ali onde eu, vez ou outra, a meu pai dava uma forçinha de caixeiro. Curioso e até perverso, sempre apertava a mão no tanto da bicada, isto só para ver quando a pobre da Mococa iria emborcar os chifres. Eu que dançava feio; ela não emborcava nunca. Nunca tive tal gosto, ou desprazer – a tipa não ia ao barro de jeito algum. Era mulher durona na queda. Parece que tinha nos couros um caboclo bravo que repartia com ela as “lapingonchadas” duplas que ambos metiam para dentro.

Ah, bonito na pessoa da Vaca Mococa me pareciam a limpeza dela, no corpo, e ainda seus modos asseados de educação. Finíssima no trato. Polida, não desperdiçava duas gentilezas, ao chegar e ao retirar-se do recinto da mercearia, onde sempre rolavam umas lorotas. Também não costumava jogar fora o sabor da cachaça. Daí, eis a razão pela qual a Vaca não era de andar cuspindo à toa, que nem papudinho safado, tampouco fazendo cara de mau-gosto. Até sempre tomava gosto, e lambia os beiços, após deglutir a abrideira.

Xingar alguém, por via da sua alcunha, também não xingava. Jamais. Nunca fazia isto nem por causa de sua graça meio sem graça: Vaca Mococa. O epíteto soava-lhe às oiças tal como se fosse o próprio timbre de batismo, sei lá qual que era, tanto a sua naturalidade ao ouvi-lo do Orlando e de outros moleques do bairro.

Nunca soube, nunca me interessei em lhe pesquisar o verdadeiro nome, embora ainda hoje avesso às alcunhas. Talvez fosse Rosa, ou Maria, ou quem o sabe, se não filei no papel do cartório a lídima graça daquela doninha? Talvez, quem sabe, tivesse crescido com nome bonito, graça poética, assim como Marília ou Ismênia, por exemplo. No entanto, foi como Vaca Mococa que aquela criaturinha inofensiva da minha infância ficou de marca registrada.

Fort., 10/11/2009.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 10/11/2009
Reeditado em 10/11/2009
Código do texto: T1915675
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