CASO DA CASCA DE BANANA

Vaiar alguém ou alguma coisa pode ser um gesto indelicado, irreverente, então de traquinagem. Até pode, também, tornar-se um ato de pessoa moleca. Mas a prática da vaia serve à plateia, multidão ou pessoa que a exercita como um prêmio da catarse. C a t a r s e, aqui, com base na Psicologia, empregada em apenas uma das quatro acepções concebidas pelo mestre Aurélio Buarque: “Efeito salutar provocado pela conscientização de uma lembrança fortemente emocional e/ou traumatizante, até então reprimida.”

Assim, para quem distribui a vaia o ato significaria a lavagem da alma, isto como reflexo individual ou coletivo de desforra. Quanto a levar um “xô!”, meio ao picadeiro da vida, em se tratando de um portador de cargo público – um político, por exemplo – , está evidente que ele já e/ou ainda não vem se havendo como um “artista” razoável.

Ora, no meu simplório entender, a vaia é um fenômeno social. Se eu pisar numa casca de banana e levar um baita escorregão, dos olhos que me veem, via boca e mãos e braços, é possível que daí me ecloda uma bruta vaia. Ah, também, aí, a vaia seria pura maldade. Tomo isto para exemplificar porque assisti, ao vivo e em cores, ao acontecido que ora transformo em c a u s o. E o caso da casca de banana eu o recolho da lembrança como abonação de experiência verdadeiramente vista, ainda quando amassava bancos em uma faculdade. Agora vou tentar lhes repassar o que vi, mercê da imprescindível colaboração de um companheiro nosso, o versátil e bem criativo F. A. Sem dúvida alguma, um sociólogo não-oficializado, mas sociólogo em potencial.

Ao curso cotidiano de uma das aulas, certa vez, o dito-cujo sociólogo, antropólogo e cientista social F. A., tudo isto ele de uma só tacada, relatou-nos à turma e ao mestre que nos ministrava aula de “Literatura Comparada” que havia escrito um livro, opúsculo este sob o título de “As influências da casca de banana na vida social”.

Até aí, escrever um livro sobre tão meritório tema, tudo muito bem. Ninguém riu, ninguém vaiou ninguém e a sessão da aula teve seu termo em clima de uma rotina normalíssima. Contudo, a confissão do colega F. A., sobre ter escrito aquele livro com título inusitado, germinou um clima de conspiração silenciosa, em surdina. Do jeito que eram feitos os golpes militares na América Latina e em outras partes do mundo, ao tempo da “guerra fria”.

Como não era de se esperar, no dia posterior ao do comentário de F. A., enquanto se desenrolava outra preleção das atividades curriculares, e como por um passe de mágica, eis que a carteira do autor inédito – eu suponho que, àquela altura, ele ainda não havia publicado o livro – aparece, pelas bordas, cheia de pencas de bananas. Carteira sortida, mesmo, por trás, até a tampa de bem vingadas bananas. Eram bananas-maçã, dos tipos prata, nanica e outras marcas. Sentadinho, lá, bem comportado, o F. A. nem se dava conta, e o pessoal rindo de orelha a orelha.

Não atino, com certeza, ainda hoje, de que cabecinha partira a manifestação da brincadeira. Na hora da encenação, nem entendi aquilo como tal, nem pesquei que aquilo fosse brincadeira. Meu primeiro entendimento foi de que se tratava de uma ofensa moral, uma vaia nos moldes da molecagem, sob outro ponto de vista: o deboche. E, como capiau que sou, bicho do mato meio escabreado, aquele número teatral ter-me-ia tirado do sério. Ou me associaria à galhofa, caindo na gandaia, ou teria partido para as porradas, então enterraria minha cara no piso da sala, muito envergonhado. Mas o provável é que também caísse na chacota, não sei.

O dito popular “um cão danado, todos a ele” é muito certo. No caso, o cão bastante maroto e cheio de invencionices da classe era o Hélder, que não herdou nadinha do nosso bondoso e cândido cardeal, o cearense Dom Hélder Câmara. No entanto, havia outros meninos grandes que embarcavam na avacalhação, todos coadjuvantes do Hélder, na arte de fazer travessuras. Mas o Hélder, sozinho... Cabrão de bem metro e noventa, bonitão, rico e metido a poeta, com estudos até nos padres, lá no Rio de Janeiro.

Uma vez, para chocar a crítica literária tupiniquim, aqui na PREvíncia (tal grafava o saudoso conterrâneo, advogado, poeta e cineasta Eusélio Oliveira), em parceria com outro menestrel meio aluado, os dois vates publicaram um livrinho de poemas ultramodernos, sem letra alguma. Os textos traziam apenas pontos, vírgulas, dois-pontos, interrogações, exclamações, reticências, e o escambau.

Por Fortaleza, de passagem, um pesquisador em Literatura, chileno de origem, quis com o Hélder, lá mesmo na faculdade, tirar satisfação sobre o conteúdo do livrinho e o que aquele rol de sinais significava. Numa de mestre, o grandalhão de bem um metro e noventa disse na rosca do nariz do chileno que “poesia não se explica, a gente é que a sente, e fim”. O jovem pesquisador chileno torceu o beiço, riu-se entre dentes, porém se deve ter inteirado da resposta bastante técnica e científica.

O certo é que os “moleques” haviam ornamentado a valer o assento do camarada F. A., pencas de bananas pendidas por invisíveis fios de náilon. Ih, mas não precisa nem falar ao leitor destas toscas linhas que, logo após haver sido armada a traquinagem, a mangofa, sem sequer atentarmos para a presença do professor, comeu de esmola e foi algo descomunal.

Vaia, propriamente, não. O caro colega F. A. não passou pelo opróbrio de uma ácida vaia, não. Com ele, houve, sim, naquela classe universitária, foi muita irrisão, gargalhadas graúdas e estapafúrdias do pessoal. Diferente da sonora e copiosa vaia que FHC levou, no Pará, em 1996, pela fuzilaria dos 19 sem-terra, em Eldorado dos Carajás, fato historicamente degradante e indelével à memória dos que têm memória. Tal lapada que levou FHC, durante um dos seus dois desgovernos, soou como boa surra de cipó de boi, que, às vezes, também pode ser um belo prêmio a quem a este chicote faz jus. Já a irrisão sofrida pelo distinto gajo Francisco Antônio teve somente tom de deboche, uma tirada de sarro entre iguais; algo como que sublimação pelo ferrolho que a estudantada brasileira enfrentava, ainda em pleno período dos “anos de chumbo”.

Fort., 7/11/2009.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 08/11/2009
Reeditado em 08/11/2009
Código do texto: T1911193
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