UM FATO DANTESCO

Sinésio... Este era o nome do meu desventurado amigo sertanejo, que, não se sabe por que motivo, esfaqueou-se todo, no ventre.

No Nordeste brasileiro, quem nasce – como eu nasci – acima do nível do mar, sempre acha meios para fazer a distinção entre sertanejo e serrano. Serrano está muito claro; é o “óbvio ululante” de que nos fala Nélson Rodrigues. Embora, muitas vezes, por besteira, tenha ele a mania de julgar-se superior, isto pelo simples fato de ter aberto o olho pela primeira vez para o Sol trepado lá nas alturas. Agora, sertanejo é o sujeito que se põe de come-quieto, cheio de mansidão, porém oriundo do baixio, em geral baixio de perder-se por léguas e léguas, com extensas planuras de terra.

Ora, mas deixemos de elucubrações tão variadas e vamos ao bago da questão, tudo se relatando na miudeza das coisas. Sertanejo de origem, o Sinésio com certeza foi criado com leite mungido, tirado no curral, e a comer carne de boi gordo. Tanto deve de ter sido assim que ele veio ao mundo bastante nutrido. E de todo sertanejo bem vingado o zé-povinho costuma afirmar estas asneiras. Contudo, se ainda hoje me monto no lombo da dúvida, é por causa do que não vi. Dele, do amigo sertanejo, sei apenas que o conheci no Camará, quando eu era só um bicho miúdo. Ele, rapagão já feito, barba bem raspada, que era azul; cabrão forte e alto por acolá.

Gajo ainda novo, todo ensopado de vida e alegria, mas danado para fumar num cachimbo. Apenas que seu cachimbo tinha canudo de madrepérola, todo bonitão, pretinho que dava gosto de se ver. Pito de luxo, pelo visto. Era ver aqueles pitos grandões, usados por fazendeiros ricos do Arizona, exibidos no cinema dos ianques. O moço viera do sertão em visita de semana à casa da irmã, casada ela com um padrinho meu, o de crisma. Vindo das planuras quentes, gostou do clima serrano, bem arejado, e por lá foi ficando. Aí amornou tempos e tempos, que nem posso calcular. De posse do cachimbo lustroso e também de sua inseparável vitrola manual, Sinésio diariamente ia bater no casarão do Camará, justo na herdade de um tio do cunhado dele, o que vale dizer, a casa de meu pai.

Já pincelei o tipo grandalhão e bem nutrido de Sinésio; ainda não decretei para vossemecês foi que o camarada era bem apessoado. Cabeleira arrumada no coco da cabeça, uma tez muito branca e rosada, nariz longo e estilizado, e toda uma gama de gentileza ao dirigir-se às pessoas. Sem preocupações, um tipo normal, normal. Simpatia no rosto só até ali. Para mim mesmo, um tico de gente, que ainda não botava sequer um metro de altura, ele só fazia “nêgo véi” para aqui, “nêgo véi” para acolá.

Fiz amizade graúda com o Sinésio, e vocês sabem: menino é bicho desgraçado de bandoleiro. Para onde o vento sopra, ele vai que vai. Criança dá-se em ternura por uma balinha de chupar ou por qualquer afago. Do estágio de amizade, passei a ser o ajudante do ‘cara’ nas suas sessões de música matuta que ele nos proporcionava. E haja Luiz Gonzaga, xotes, baiões e xaxados na vitrolinha manual do meu amigo.

Ia-me esquecendo de lhes falar que... Não dizem que “o uso do cachimbo entorta a boca”? Pois a tais alturas, sendo eu o “nêgo véi”, Sinésio já se tornara meu dileto amigo. Ora, até manuseava o cabo da manivela daquele treco sonoro, ou seja, a vitrola do ‘chapa’! Sinésio é que me solicitava o obséquio. Vejam como eu era um guri valorizado. E aí, muito ganjento, rodopiava a manícula da caixinha que tocava com a ajuda de um disco de cera de 78 rotações. Mas eu nem sabia o que diacho era isto de rotações. Então, dando voltas no troço, sentia-me o próprio imperador de Roma, aquele maluquinho que atendia pela graça de Nero.

No vaivém dos meses, Sinésio voltou para o seu sertãozinho de Água Boa, em jurisdição de Quixadá, a cidade da famigerada Pedra da Galinha Choca. Cativante e engraçado que muito era, nem é preciso declarar que o rapaz deixou saudades arranchadas no peito dos serranos.

Após anos e anos, cresci e vim morar na cidade grande. Um dia, minha irmã deu com a língua nos dentes sobre a infausta notícia. Claro que uma reportagem aziaga, um fato dantesco que jamais quisera pôr aqui neste papel. Sinésio, por livre e espontânea doideira, sem que nunca tenham sido descobertas as reais razões, cometera um esfaqueamento de si mesmo. Diz que ele pôs todas as vísceras para fora, antes de tombar, cortando-as, uma a uma, até que, exangue, virou a cabeça pelo avesso.

Fort., 5/11/2009.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 05/11/2009
Reeditado em 05/11/2009
Código do texto: T1905908
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