COISA-FEITA
Vou lhe contar um acontecido meio escabroso. Vocês podem até achar que não seja crível. Líquido e certo, contudo, o ‘babado’ aconteceu. ‘Causo’ que se pode relacionar com magia negra. E sou eu que vou classificar isto? Leigo na matéria eu sou, inteiramente. Nunca pensei em rotular isto de aquilo ou aquilo de aquilo outro.
Minhas crenças no transcendental e misterioso só ascendem, quando muito, a meio palmo de altura. No entanto, em política de boa vizinhança que tento conciliar com os meus semelhantes, gentes de todos os credos, fecho questão com os espanhóis e não me arrependo, quando eles afirmam, ‘numa boa’: “Yo no creo en las brujas, pero que las hay, las hay”.
Dito isto, sem querer declarar de mão em riba da Bíblia que acredito ou que descreio em umbanda, macumba e quimbanda, estas arrumações afro-brasileiras, coisa e tal, passo a desabotoar para vocês um caso que “vi”, fato do qual tive mais notícias por fonte limpa e confiável.
Lá pelos idos do arco-da-velha, em data incerta e pouco sabida, namorava eu uma ‘mina’ – que naqueles tempos a gente ainda chamava de pequena, ou garota, mas o mais comum era garota: “A minha ‘pequena’”, “a tua ‘garota’”. Assim era que a rapaziada falava, na época.
Pois a minha garota me botou convite para eu ir conhecer a chácara de um tio, lá dela, o Seu Luís. Obra de poucos quilômetros de distância das botas de Fortaleza. Convite feito e aceito, numa sexta, à tardinha, eu peguei carona nos teréns da família de Seu Luís, o tio milico da reserva da dita pequena, a cabritinha namorada. Fui mesmo, cara-de-pau.
Madrugada alta, já, estrelas luzentes no firmamento, e eu dormindo na sala, que só um justo. Isto após uns lances de namorico, ao luar, e algumas cervas na cabeça. Assim, só no dia seguinte, sol por acolá, foi que soube do rebuliço pela madrugada. Alguém viera, às pressas, bater à porta da chácara a fim de avisar que, lá em casinha afastada do sítio, havia um morador a coçar as ventas, bufando feito gato, quando se dana de raiva.
O infeliz, conforme o portador do recado, espirrava que espirrava, já de nariz arroxeado, e derramava tapurus por tudo quanto eram aberturas nasais. Eca, tapurus, com toda fé de verdade. Daí, Seu Luís, vendo a coisa safada, os tapurus pulando fora, nem confiou na presteza de seu caminhãozinho e ligou para vir um táxi do bairro de Fortaleza mais próximo, justo o Antônio Bezerra.
De táxi na porta da chácara, levaram o gajo para o maior hospital de emergência, no centro da Capital. Enquanto isso, o homem se esvaía em tapurus pelas narinas. Só no sábado que saberia destes e de outros detalhes: o apressado socorro ao morador, na Assistência Municipal, etc., e tudo o mais.
Mais luar, à noitinha de sábado, e mais namorico e umas prosas com o resto do pessoal do tio da ‘mina’. E, para ser curto, aqui, no palavreado, domingo, à tarde, quando do nosso regresso, adivinhem quem vinha lá no fim da carroçaria do caminhãozinho do Seu Luís, agachado, todo capiongo e, de vez em quando, naquele fungado de aborrecer mesmo um ermitão de pedra? Justamente; vocês acertaram. O cara, coitado, já ia de novo para que lhe arrancassem mais tapurus dos gorgomilos.
Tempos depois o tio da namorada pôs os pontos nos is, esmiuçou-me como se dera a evolução das coisas. O morador era maranhense, filho de Codó, cidade com fama de ser um dos maiores centros de umbanda do Estado. Briga besta com a mulher, e a sogra, além de macumbeira contumaz, era uma cascavel – de valente – e nunca apreciara a fachada do genro.
Homiziado, no Ceará, cercanias de Fortaleza, o peão de Seu Luís caiu na esparrela de, um dia, já saudoso dos filhos e da mulher, aviar uma cartinha à família, dando ciência das paragens geográficas em que se encontrava. Ih, mas foi tiro e queda.
Dando uma ré ao hospital, o daquele domingo, para sanar o aperreio de saúde, outra vez o codoense foi atendido pelo mesmo médico do plantão de sexta-feira, pela madrugada. Trabalho cumprido, de novo, assepsia completa nas ventas do peão, aí o esculápio virou-se para o patrão do peão e rezou bonito: “Olhe, não creio em macumba. Mas, se houver, aí está um caso. Eu lembro bem, o senhor foi que trouxe o paciente, na sexta. Eu queimei tudo, e não justifica esse homem ainda ter tantos tapurus”.
Por informações, o patrão do maranhense levou-o a um pai-de-santo, em Caucaia, cidade-sede do lugarejo Araturi, lá onde se arranchava a chácara. Na sessão de macumba, ou umbanda, não sei o quê, o pai-de-santo dançava a tiracolo com o rapaz e os tapurus iam pingando, que nem chuva grossa. Os bichos branquinhos e gorduchos, assim, grandes, caiam um a um.
Após a função, o macumbeiro jurou de pés juntos que foi a sogra que mandou a “coisa-feita” pelo vento, via postal, pelo rumo. Antes o despacho não chegara, segundo o perito umbandista, porque a velha ainda não havia descoberto em que recanto o marido da filha se encontrava. Por isso tudo é que eu creio, nas coisas, e nelas não acredito, nadinha, a um só tempo. Todavia ainda fico com os espanhóis, em assuntos de crença: “Yo no creo en las brujas, pero que las hay, las hay”.
Fort., 3/11/2009.