UM LOBISOMEM EM ORAÇÃO
Menino é coisica besta para se impressionar e não ir dormir direito, quando, numa roda de conversa noturna, escuta alguém a tirar a limpo histórias de alma, lobisomem ou mula-sem-cabeça. Certos adultos, também; alguns se pelam de medo e fogem de ouvir contos de visagens como o coisa-ruim foge da cruz.
Seu Joãozinho Bilé, de Catolé do Rocha, na Paraíba, é só quem sabe descascar potocas avantajadas, envolvendo essas três entidades do imaginário popular. Das três, não, ele tem uma Wikipédia no quengo, em se tratando de arrumações que lembrem coisas estapafúrdias. Disse “do imaginário”, o que pressupõe que sejam personagens fantasiosos, inventados de cabeça, por invenção de indivíduos que usam de faltar com a verdade. Gente assim do tipo de Seu Pantaleão, do Chico Anísio, ou, então, daquele peste mentiroso, o Alexandre, do livro de Graciliano Ramos.
Até já andava esquecido, mas da última vez que Seu Joãozinho Bilé pôs os pés, aqui, no Baixio do Bode, em visita de amabilidades à casa da filha casada, houve tanta "contação" de causos que ninguém deu vencimento. O papo entrou no túnel da madrugada afora, descambando para as barbas do amanhecer, e as deslavadas petas extravasaram pelas beiradas da audiência, que nem couberam potocas nos caçuás das oiças de meu pai.
Ora, na audição da embira de fatos interessantes que Seu Joãozinho desfiava, comecei a pegar traíra, cabeceando de sono. Por isso ainda perdi muita coisa boa. Segundo o coletivo me fez inveja, lá pelos sóis do dia seguinte, eu ainda perdi, se não for por vantagem da hipérbole, uma meia dúzia de histórias. Contudo, antes que dormisse, feito pedra, na espreguiçadeira rota e funda, de pano listrado no comprido, aberta toda ela ao chuviscar da Lua, ainda pesquei de ouvido algumas boas, daí que vou retirar uma que lhes passo a desembuchar do aió, agora mesmo, em cima das buchas.
Coisa e tal, e vira e mexe, ainda cabra enxerido e andarilho, Joãozinho Bilé, em um dia sem data, mas sendo sábado, foi bater distante, numas diversões de quermesse. Era uma festa de igreja, lá para as bandas do sertãozinho de Siri no Sal, município recém-criado da Paraíba, limítrofe com as ventas do município de Catolé do Rocha, e que dava abrigo à casinha de Maria das Neves, bem num tal distrito de Funil do Meio. Lonjura de sertão, lá pelas botas do Judas.
Pois muito bem, bem, bem! Justo com a Das Neves foi que o Bilé contraiu namoro ferrado e, aos finais de semana, sempre aos sábados, botava casco de cavalo a caminho do lugarejo de Funil do Meio. Eita, amor danado, porque era longe onde a lindeza da jovem Das Neves se escondia! Namoro solto, coisa de os dois não roerem a corda, nem quando, para prostração da mãe da moça, o casal arrumava o mais leve arranca-rabo. É que a velha queria passar logo a donzela adiante e não fazia segredo nenhum de que levava gosto com a cara daquele talzinho Joãozinho Bilé.
Acontece que matutos das brenhas do Nordeste dormem com as galinhas. Porém, vindo de tão distante o namorado, por que não lhe franquear mais um tempinho de lambujem para os pombinhos apaixonados? E era o expediente que os pais da Das Neves concediam, por cima do tempo regulamentar: uma prorrogação, obra de horinha e meia a mais, e sem a ranzinzice dos relógios de cidade grande. Coitado do rapaz Bilé, quem sabia que hora iria ele bater com os costados, meio às costelas do seu baio, lá em Catolé? Ah, mas aqui, sim, é que é cidade pai-d’égua, na sua concepção. Lá é onde existem praças anchas, templo arejado, cemitério com capelinha e tumbas de mármore, além de cinema bonito e casa de putas, idem. Quero dizer, cabaré abarrotado de meninas bonitas.
Compadres meus amigos, vocês que são hereges, sem crença nas divindades supracitadas – ainda se lembram quais são? – eu nem lhes conto, conto lá o quê! Senão vocês morrem de chilique ou de espanto. Um dia, repeti história de meu pai, que versava sobre alma, para as orelhas de um guri, chapa meu de escola. Resultado da ópera: de noite, já tarde, o pivete botou o berro na casa, assombrou-se todo e, quando a mãe do curumim foi vê-lo direito, o bodinho de garoto tinha se mijado todo, nas calças, e no fiango de rede. Pobre do colega Jereco. Nunca mais lhe pude fazer "contação" alguma de almas penadas, que o coisa sentiu-se sempre sobressaltado.
De volta à vaca-fria, focos de luzes, agora, bem acesos, no então Joãozinho Bilé, que, solteiro, ainda, naqueles idos, era só o Joãozinho Bilé. Ele só viraria “Seu” Joãozinho Bilé depois que contraiu núpcias casamenteiras com a distinta e donzela virgem, a Das Neves. De fato, o evento social se deu na ermidinha de Siri no Sal, obra de um ano e meses depois.Houve muito arroz com casca jogado nos noivos, para dar sorte, e com termo de sucesso líquido e certo, sem falar no muito gosto de D. Felipa, o que vale dizer, a mãezona da noiva. Mas, antes de sequer aventar-se a récua de meninada que nasceu do casal feliz, num bem depois, vamos ao que, numa das vindas da fazendola de Funil do Meio, ainda no departamento do namoro, o nosso paraibano, macho que só preá, topou de proa na estrada que o trazia sempre de retorno para Catolé do Rocha.
E, pois, então?... À beira da estrada, sem que o noivo de Das Neves notasse, e não é que havia uma cruz ali instalada, e cruz muito fagueira? Sim, senhores. Uma cruz de bom tamanho, de cimento e tudo! Margem da estrada, aquela ilhazinha arborizada. Bilé sempre distraído, por riba de baio estradeiro, a cantar o amor febril, ia lá ele notar aquele trambolho meio escondido no mato?! Iria lá o quê! E nunca havia dado nem fé da coisa meio camuflada.
O diacho é que a cruz não teria problema algum, se ao sopé da mesma não estivesse, de joelhos, talvez numa sessão de oração fervorosa, aquele gigantão com aparência humana. Corpanzil todo cabeludo, o que fez logo supor que aquilo só podia mesmo era ser joça de assombração, coisa encantada e do outro mundo. Em estrada erma, daquele jeito, longe de qualquer pé de pessoa, como que o sujeitão escuro e peludo, ao argentino luar, de presas graúdas, olhos de fogo e aboticados, com orelhas enormes, ver dois abanos de palha, iria estar acolá, sozinho, pelas bordas da meia-noite, a rezar ao pé de uma cruz, bancando o fiel penitente e bem-comportado?
Tudo o paraibano ainda só iria desparafusar da boca quando nos disse, a todos, em sua belíssima audiência, que, ao ver a visagem do lobisomem, ele ficou passado, muito pasmo e palerma, de olhos arregalados, como que todo embebido em anestesia. Os cabelos, em pé, feito setas esticadas. Parecia que ele tinha umas vinte arrobas de peso e uns dez metros de altura, isto fora a altura do cavalo. E mais: num átimo, ao mirar o bicho, ficou com os olhos ardendo, faiscando brasa. Também, como não era homem de fazer lambança, com humildade, confessou-nos e ninguém achou graça: chegara em casa com a braguilha que era um charco.
O mesmo extremo pavor – é possível – também é crível que se tenha dado com o bruto, que era baio bom e sensível, que lhe não deixava mentir. E a alimária competente sinalizou, de pronto e com esperteza, na hora H, muito ágil, ante aquela inesperada aparição. Assim é que bufou, refugou, ainda que segura nas rédeas. Fez finca-pé, elevou as patas e, por milagre, seu montador não desabou no chão. Mas não fora ao barro mercê de sua perícia de cavaleiro habilitado. Igualmente como era bicho traquejado, montaria de primeira, foi daí que o baio de Seu Joãozinho Bilé esgueirou-se, fez como um drible do “Fenômeno” e tirou o corpo fora. Aí o animal equino, de boa raça, nem corria mais – ele voava a caminho de Catolé do Rocha.
Fort., 31/10/2009.