RAIMUNDO E SUAS GROSELHAS

Falar da escola primária, até hoje, automaticamente me faz subir à telha da lembrança o diacho de uma palavrinha exótica do meu velho professor: groselha, fruto que nem sabia de onde. Isto é, não sabia, à época, até que, já menino grande, eu a vi em Porto Alegre. Anos depois, de Santa Catarina, a filha me trouxe da tal frutinha sulista um vinho delicioso.

O mestre-escola tinha a visão material privada pelo destino. Todavia era atilado como ninguém. Enxergava melhor pelo sexto sentido, talvez até tivesse um sétimo, de quebra. E era hábil no tato com o qual arrancava as ciências e letras do livrão em alto-relevo (escrita braile) que portava sempre ao pé de si. Também, nas contas, um fenômeno ao dedilhar números imaginários no sorobã. Daí é que lhe saíam os cálculos intrincados dos juros, das porcentagens, das regras de três e de sociedade.

E toda vez que Seu Esmeraldino sacava das folhas amarelecidas do Braille uma dezena de problemas, oito deles, pelo menos, extraíam sorrisinhos incontroláveis da pessoa do Raimundo, um dos meninos aprendizes da classe. Assim, como era de costume, e para variar somente o teor da questão, o vozeio de reza do mestre politonava, à hora do ditado da tarefa de casa.

“– Comprei cinco dúzias de groselhas ao preço de seis cruzeiros cada dúzia. Se tivesse comprado apenas vinte groselhas...”

Ih, mas aí a coisa não prestava. O magricelo da turma não se aguentava e ria de modo desabotoado. E ria mais, ainda. Ria até de os queixos do garoto fazerem roda de samba. Mas era simples a razão do fraco que dava no menino. Tudo por causa da palhaçada sonora de uma palavrinha forasteira: groselha. Ora, pivete do Nordeste, o guri... Acostumado só com manga, caju, banana, e lá se nos vinha Seu Esmeraldino com palavreado estrangeiro... Pois é. Os fonemas da groselha davam comichão nas orelhas e nos dentes do Raimundo.

Tirante o seu jeito (sem-jeito) de rir à toa, e somente na audição das groselhas, o Raimundo não era lá aluno de todo marruá. Executava em dia suas obrigações da escola. Que culpa tinha ele, se aquelas frutinhas de longe não lhe cabiam direito, com modos civilizados, nas duas caixinhas das oiças? Daí o seu espalhafato, até se fingindo de educado, na contenção das irrisões. Mesmo assim, séria e de olho duro, quando o notava em deplorável quá-quá-quá, Dona Gerviz (a esposa de Seu Esmeraldino) só fazia:

“– Menino besta pra rir, esse Raimundo. Toma tento, garoto. Deixa de ser levado, seu demente!”

Podiam vir mangas, cajus e bananas, nos problemas aritméticos de Seu Esmeraldino. Até podiam vir, em respeito à cultura regional. Estas são frutas da boca do nordestino. Agora, groselha, aí a coisa muda de rumo. Pois o Raimundo se desmanchava em risos, ao ouvir o nome na certa avermelhado – sei lá! – e alienígena da fruta misteriosa. Seu Esmeraldino assegurava que aquilo era apelido de fruta.

Mas a besteira não procedia do nosso mestre-escola, que era homem lido, corrido e versado. Ora, Seu Esmeraldino estudara no Benjamin Constant, Rio de Janeiro, Brasil. Sem visão, de fato, só que de grande luz interior. Além do quê, não fora ele quem botara no Braille tantas peras, ameixas, uvas e maçãs, e sobretudo groselhas, lá dos infernos da pedra.

Fort., 28/10/2009.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 28/10/2009
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