UM CÃO DE NOME TROTSKY
O dono do bicho importante mexe com o comércio de variedades, uma tremenda miscelânea de esquina, onde se negocia e proseia de um tudo. Lá é onde, aos domingos, até ali pelo meio-dia e meia, os coroas do bairro tiram seus dois dedos de prosa, comem galeto na brasa, metem-se com a vida do próximo e bebem cerva geladinha.
Jota tem algumas leituras a mais que o normal dos mercadores. E até ensaia a desenhar figuras eróticas e a escrever poemas e outras lorotas. No varejo, cursou o 2º grau, mas pretende seguir em frente. Diz que vai meter-se em um curto de Pedagogia, que o colégio vizinho oferece, em convênio com uma universidade do interior.
Para lhe montar guarda, na venda, tomou uma providência muito previdente: adotou um vira-lata. É vira-lata e luxento, sim, um cachorro pequeno-burguês, com “pedigree” de bom vira-lata e tudo. E homônimo de um figurão bolchevique. Para bem dizer, muito especial – sem dúvida – o canzarrão do meu amigo. Jota não faz segredos; comenta que o bicho é para coibir a onda de lalaus que infestam o outrora pacato bairro da cidade.
Talvez a escolha do nome (Trotsky) tenha sido para encher o saco dos comunas que frequentam a quitanda de variedades. A criação de estima do Jota provavelmente recebera o nome frondoso foi para chatear o povinho pacóvio do pedaço. Ora, pois é. Trotsky, o próprio. Aquele notável da Revolução Russa. Imaginem, só: um ponta-de-lança da vitoriosa (em termos) Revolução Russa! Um revolucionário de escol, morto a machadinha, por um agente francês, da KGB, ali na cidade do México.
Hipótese também que não deixo de reconhecer é a de que, de fato, com algumas letras na estante da cachola, o dono do cão cheio de mordomias é mesmo um camarada com hábitos intelectuais. E que, com provas provadas, leva medianos pendores revolucionários. Anos atrás, para o governo de todos, se alguém botasse um nome assim, contendo k e y, em qualquer cristão ou animal, aqui, no Brasil, ai, ai, ai, era tiro e queda: prisão, na certa. Pois calculem o desaforo que seria, se vocês fossem ter em casa um cão “subversivo”!
Ah, então seria isto mesmo: pendor e gosto do meu amigo pela coisa revolucionária. Tanto a suposição parece verdadeira que, na mesa de um IPM, a graça do vira-lata só teria sido escolhida mediante o desbravamento de um bando de livros e panfletos vermelhos, ou, como dizia o genial Dias Gomes, tudo material “subversivento”.
Não raciocinei com a hipótese e a conclusão do chefe de um IPM, que não pensem que o método da dedução seja de um dedo-duro. Odeio os delatores e, por nada, agora ou lá nos tempos “de chumbo”, eu mandaria o meu amigo gozador para as masmorras de onde ainda tive a ventura de me safar, antes que fosse somar a lista daqueles “desaparecidos” da História.
Antes da decisão tomada – batizar o cão como sendo Trotsky –, o Jota, comerciante e eclético no gosto pelas artes, com algum humor, ainda se inclinou, com simpatia, para Lênin. Mas o diacho era que incautos podiam desvalorizar o vira-lata, bicho castanho com modos, latido e ares de pequeno-burguês. A pronúncia Lênin podia sair arrevesada, caolha, de viés e vulgar, como se diz por aí, e o nome do cão até soaria como Lenine. Então, ingloriamente, para que arriscar o valor de sua cria com um caso bobo de pronúncia? Aí o esforço, com base no exemplo histórico, viraria água de torneira.
Por não encarar, hoje, em tempos de paz, as implicações que todos teriam tido, lá nos idos da guerra suja, aplaudo a iniciativa e empreendedorismo do meu diligente amigo. E disse-lhe que Trotsky soaria melhor. Com certeza, portando o nome de leão – Leon Trotsky –, seu canzarrão vira-lata não vai dar bobeira para lalau nenhum. E, assim, com epíteto estrondoso, o bicho será útil ao estabelecimento do Jota.
Fort., 26/10/2009.