Os doze trabalhos de Pinóquio
Colocando terra em vasos, plantando mudas, um verdadeiro dilema se abriu perante meus olhos, uma minhoquinha insípida se contorcendo na minha pá, come-la ou não? Até agora ainda não me decidi o que fazer. Comendo estarei para sempre abdicando da minha dignidade, o mundo aos poucos foi me derrubando, do apogeu ao fundo do poço, degustar esse pobre anelídeo seria o rebaixamento final, daí para o fim a linha seria muito tênue, sem chance de reforço.
Nesse sol escaldante, queimando o couro cabeludo, transformando mitos e lendas em realidade, vou tentar me lembrar dos fatos da minha queda. Engraçado essa minhoca tentando escapar da minha pazinha, apreensiva e desengonçada.
Nasci com um gênio esquisito, com um desdém mortal de vida, nada nunca me satisfazia por completo. Os dias passavam por mim sem que eu percebesse, com os dias passando, a morte vinha chegando, não pensava e nem me incomodava com isso. Passei a infância como o filho perfeito, ia jogar bola, tirava boas notas, era popular, calmo, nunca dava aborrecimentos, o homem que tocaria a firma do pai, comecei desde cedo a ser preparado para isso, “que bonitinho, parece tanto com o pai”, diziam minhas tias solteironas, a tia Agnes era a única que eu gostava, nunca me bajulava e nem apertava minhas bochechas, parece que lia meus pensamentos e sabia que eu odiava isso. Tia Agnes fazia um molho de cachorro-quente que dava água na boca, era o melhor que eu comi até hoje, infelizmente morreu dois anos atrás, foi minha última parenta viva.
Na escola gostava de fazer amigos, mas apenas para que ficassem me devendo favores, que eu tinha o mórbido costume de lembra-los sempre, justo na pior hora, para dar aquela humilhada, era perverso e me alimentava disso. Isso foi parte da minha ascensão, era respeitado por todos, professores nunca chamaram minha atenção em sala de aula, era excelente para manter minha pose de intocável e ser superior, se eu fosse chamado atenção ou expulso de sala, minha fama viria abaixo. Certa vez tinha esquecido de fazer um dever de casa, matemática, logaritmos ou algo do tipo, o professore veio repreendendo em voz alta todos os alunos que não tinham feito, quando chegou a minha vez, não perdi em nenhum momento o sangue frio, escorreguei uma nota de cem reais que ele prontamente pegou e me deu os parabéns pelo excelente desempenho nos deveres. Vale ressaltar que não demorou dois dias para que eu recuperasse esse dinheiro, apenas precisei usar minha cara de pau e agilidade para entrar na sala dos professores sem ser visto.
Uma sombra agora veio me visitar e ficar na expectativa caso eu coma as minhocas de contar as suas amigas estrelas. Estou fazendo mudas de lírio da paz, pego alguns potes, encho com um pouco de terra, coloco ali o torrão da muda, tentando sempre mantê-la no centro e em pé, torno a encher de terra, soco a terra para que ela desça e fique bem compacta e a muda bem plantada, nada muito intelectual, apenas mecânico e trabalhoso, deve ser por isso que o trabalho é mal pago, qualquer Zé ninguém faz, e se bobear, fazem muito melhor do que eu. Não posso largar, preciso desse emprego, foi uma sorte danada ter conseguido essa vaga quando não tinha mais esperança, o mundo tinha acabado pra mim, era o que pelo menos eu achava, mas foram necessárias mais quedas para me mostrar o contrário. Acabo de levar um esporro do meu chefe, diz ele que eu estava muito pensativo, como se peão tivesse que ser burro e não ter direito a um pensamento mais elaborado, mal sabe ele que sou muito inteligente, nada verdade ele sabe disso, mas faz questão de me achar um retardado. Eu faria parte da mensa se quisesse, nunca quis e agora é tarde, imagina um bando de prepotentes querendo resolver todas as questões do mundo e bradando à plenos pulmões que resolvem por terem um Q.I. alto, vômito só de pensar numa sala de debates com essas pessoas.
O sol voltou e tenho as unhas encardidas de terra, ainda tenho que plantar mais de trezentas mudas até o fim do dia, essa minhoca tem um aspecto delicioso.
Quando me formei no colégio, já tinha em mente fazer administração de empresas, e me inscrevi no vestibular, teria que provar a família que eles poderiam continuar apostando em mim, no rapaz de ouro, o gênio que toda sogra gostaria de ter, orgulhar a sociedade e essa parafernalha todinha, não tinha como fugir desse karma, eu tinha que estar sempre brilhando para essa merda de sociedade. Já notou quando se tenta desviar das normas o que acontece? A sociedade te prepara uma peça, siga o protocolo ou levará uma surra de pau mole, não tente desafia-la, vai acabar tendo que se deparar com o dilema de comer ou não uma minhoca. Passei no vestibular entre os primeiros, meu pai deu uma mega festa, toda a família reunida. E meus dois primos (filhos do meu único tio, Marcondes) levaram uma máquina de cortar cabelo, queriam cortar o meu, demonstração imbecil de socialização “corte o cabelo quando passar no vestibular, seja careca e demonstre que agora é um universitário”, enfim, o tipo de coisa para a sociedade, obviamente não deixei cortarem o meu cabelo, não que ele fosse grande, nem era, mas não era algo que eu queria fazer e não fiz, para isso quebrei o nariz de um primo(um ano depois desse incidente ele morreu de pneumonia), o outro(teve um AVC e morreu pouco depois do primeiro) alegou que ele tinha caído da escada e tudo ficou por isso mesmo, só tia Agnes sabia que tinha sido eu, que santa criatura, espero que esteja descansando em paz.
Um pequeno parágrafo sobre o tio Marcondes, pouco depois que seus dois filhos morreram, sua mulher perdeu completamente o juízo e foi embora com um africano, eles se mudaram para o país dele, Burkina Faso, tio Marcondes não segurou a onda e acabou se suicidando.
Conheci uma bela garota na faculdade, ela fazia psicologia, linda e quase perfeita, o quase justamente pelo fato de fazer psicologia, levava muito a sério essa cadeira e te olhava como um médico olha um paciente, nunca gostei disso e constantemente pedia para que ela parasse com isso. Ela dizia:
- Amor, esse seu silêncio denota uma aversão monstruosa para com o mundo, é assim comigo também ?
Puxa, nem era com ela, mas na primeira parte ela acertou em cheio, tinha que começar levar a sério esse curso, inconsciente e esses outros lados obscuros da mente.
Contorcendo e espreitando, outra minhoca veio se unir a minha amiga, não sei se em solidariedade ou apenas por coincidência. Ao longe, sobe uma poeirada danada, os outros decidiram se degladiar, é sempre assim quando o patrão sai, dinheiro em apostas rola solto, sou o único que nunca participa, não é por não ser muito brigão, a questão é exposição, se sentir um gosto de sangue na boca vou me cortar todinho, tenho um prazer orgasmático em me ferir, desejo de auto-destruição e caos, que o mundo um dia se torne de isopor e que o grande Godzilla aqui saia pisando em tudo e em todos, a sociedade me estragou, quero dar o troco. Minha ex-namorada dizia que eu era um sociopata em potencial, só em teoria, material nada, não tenho grana nem para ir ao circo rir dos palhaços. Opa, o mais fraco dos lutadores venceu, o loirinho foi o único que apostou nele, cara de sorte, levou toda a grana sozinho, não duvido que tenha plano com o grandão que perdeu, no fim do dia eles dividem a grana. Passam correndo agora por mim, o patrão parece estar voltando. Pego a primeira minhoca, a pioneira dessa história, começo a cheira-la, um cheiro forte de terra, ainda não foi dessa vez que eu criei coragem, sigo contando minha história.
As coisas começaram a piorar no dia seguinte em que me formei na faculdade, meus pais estavam voltando do meu baile de formatura e se afundaram na traseira de uma carreta, morte instantânea, tiveram tempo apenas de olhar a luz branca, atravessar o túnel e dar um abraço no capeta, tudo isso é muito mórbido e meus pensamentos doentios, mas é isso mesmo que eu temo que tenha acontecido, eu não acredito em forças espirituais, tanto faz também. No enterro aquele chororo danado. Estava um sol muito forte, acredito que tenha sido o dia mais quente em décadas, suei até não poder mais usando aquela característica roupa preta de luto, nunca vi tantas lágrimas derramadas, até minha ex-namorada estava chorando, parecia até que contrataram um exército de carpideiras, só quem não chorava eram os parentes mais próximos como eu, meu irmão e minha tia Agnes. Foi caixão fechado, a pancada tinha sido feia, eu acompanhei na identificação dos corpos, um trabalho deveras desagradável, o rosto deles parecia de massinha e que uma criança de três anos tinha passado ali e brincado o dia inteiro, nem em filmes trash tinha visto algo assim.
Não acredito nisso, num instante a loja vazia, no segundo seguinte ela cheia, todos os quatro vendedores ocupados, quando isso acontece um dos peões tem que dar um suporte, não vejo nenhum apto a isso agora, terei que dar atenção aquele jovem, chegou em um carro importado.Pergunto a ele o que deseja, mas no primeiro momento me ignora completamente. A única vantagem de se atender alguém é a remota possibilidade de ganhar uma gorjeta, remota mesmo, de umas cem pessoas que eu tenha atendido até hoje, se ganhei dez reais no total talvez seja muito. Ele parece indeciso, fica andando pra lá e pra cá, em determinado momento ele pára, aponta um ipê e pergunta:
- Pode pegar sol ?
Levanto a cabeça para o céu, contemplo o sol que anda me castigando o dia inteiro e penso seriamente se ele está querendo brincar comigo ou se é retardado mesmo. Não demorou muito para que ele interrompesse a caminhada e me perguntasse:
- Para plantar eu preciso fazer um buraco no chão ?
Olho para o tronco da árvore e dessa vez nem penso em possibilidades, sim, ele com certeza é extremamente burro e retardado. O mundo não pode ser justo, como um jumento como esse dirige um carro tão caro? Certamente deve ser do pai, ou então ele é jogador de futebol, quem sabe um cantor de músicas medíocres, basta colocar duas frases no papel rimando “unda” com “bunda” e está feito o mais novo hit do verão. Ele ficou andando por mais de uma hora, sempre com uma pergunta mais imbecil que a outra, devo estar pagando um castigo muito grande, ou é pegadinha do meu chefe. No fim, ele se decide por uma forração que custa sessenta centavos e vai embora cantando pneu, não sem antes ter pago com uma nota de cinqüenta reais, o que me levou a crer que seu intuito era o de apenas trocar o dinheiro e me encher o saco. Tenho que voltar para as minhas mudas, estou atrasado.
Herança, partição dos bens é sempre uma dor de cabeça a mais, por sorte meu pai já tinha feito o testamento. A leitura não foi surpresa nenhuma para meus familiares, apenas pra mim, não imaginava que ficaria com 80% dos bens, enquanto que meu irmão com apenas 10%, os outros 10% tinham ido para tia Agnes, irmã do meu pai. As outras tias solteironas ficaram apenas na esperança, essa que se mostrou cruel, fincando suas garras naquelas ancas portentosas. Uma não agüentou a barra de ficar pobre e acabou se enforcando, junto disso, derrubou parte do teto da sua garagem, matando junto dois ratos, que calamidade! A segunda caminhou até a praia mais próxima numa noite de lua cheia, esperou que a maior onda quebrasse na areia para se jogar na água com toda a vontade, seu corpo foi achado boiando três dias depois, o pescador que o achou tinha maior cara de necrófilo, não duvido que tenha tirado o atraso com a minha pobre tia. A terceira e última das solteironas viu que sua última esperança era conseguindo um casamento, se engraçou de todas as maneiras pra cima de um padeiro recém chegado na cidade, seu nome era Juventino, mal sabia ela que ele era procurado pelo polícia, animal da mais alta periculosidade, ela acabou no forno da padaria e servida como cheio de bombas de chocolate.
Sabe de uma coisa que me deixa supimpa de felicidade? Solidariedade. Certa vez, isso nos bons tempos ainda, andei triste por uns dias, algo que não sei precisar o motivo, bateu de uma hora para outra, não tinha acontecido nada de especial. Eu tinha me sentado no banco da praça com a cabeça baixa, triste, lembrando de momentos felizes, quem sabe assim me animava novamente, foi quando uma senhora se aproximou, colocou a mão nas minhas costas e me falou baixinho:
- Vai passar filho, seja lá o que tenha acontecido.
Olhei aqueles olhos brilhando e aquele sorriso gostoso, me animei prontamente. A mesma coisa estou sentindo agora, um colega de trabalho senta ao meu lado e começa a me ajudar, sabe que meu chefe tem uma birra irracional contra mim e que eu não iria dar conta de tanto trabalho em um dia, isso é proposital, dá motivo pro chefe me chamar de imbecil e incompetente. O vulto das minhocas se mexendo na minha pá o assusta, quando ele vai pegá-la para jogar longe, eu seguro a sua mão e peço para que deixe elas lá, quietinhas, dessa vez muitas vieram se reunir a primeira, são umas quinze minhocas agora. Um grito sobressalta meu colega, o patrão o está chamando, certamente inventando uma nova tarefa para que eu tenha que me virar sozinho, que sina absurda.
Aquela piranha me largou, fugiu com o meu irmão, mas a sua decisão não foi assim esporádica, alguns fatores contribuíram para isso. O primeiro foi causado pela pressão, meu irmão me ligava todos os dias, mandava e-mails, cartas, queria que eu dividisse a herança com ele. Quando duas tias morreram, ele não hesitou em colocar a culpa em mim, dizia que minha ganância tinha matado elas. Com tanta insistência acabei me comparando ao Dick Vigarista, não conseguia mais dormir direito, a culpa começava a me corroer, decidi me livrar da herança maldita e dei tudo de bandeja pro meu irmão. Minha namorada foi contra isso, como era de se imaginar e começamos a brigar quase todos os dias, com isso acabei me afastando dela pouco a pouco. Tocava meu trabalho administrativo e ganhava o suficiente para viver bem, mais que isso seria extravagância, não sabia mais o que ela queria, mas meu irmão sabia e a seduziu com dinheiro, como o corno é sempre o último a saber, em um determinado dia ela chegou pra mim e disse que estava me deixando pra viver com meu irmão, eu não disse nada, apenas senti um golpe profundo no orgulho, me senti caindo em um precipício, achava na época que iria me recuperar em pouco tempo, estava enganado, depois disso só afundei cada vez mais.
A vingança tardou, mas não falhou, certo dia trabalhava quando recebi a notícia da morte deles pela televisão, tia Agnes tinha me ligado aos gritos e ordenou que eu ligasse a televisão. Aquele caixinha dava a notícia de um casal de amantes que tinham sido encontrados mortos em um quarto de motel, aparentemente morreram intoxicados com gás, rolou um vazamento em um tubo que esquentava a água da piscina, essa era a conclusão inicial dos peritos. No primeiro momento tia Agnes me culpava, achava que eu tinha algo a ver com isso, mas a tranqüilizei e ela acreditou na minha inocência. Justamente no dia em que ia me redimir, estava devendo trabalho, tinha entrado em depressão e ficado afastado de licença médica, estava a ponto de ser demitido, mas minha volta da licença e meu passado glorioso impediram isso. Fui no enterro dos dois, estava ficando expert em enterros, o coveiro já era meu conhecido e o chamei para tomar uma cerveja comigo. Descobri que meu irmão andava quase falido, tinha apostado grande parte da grana na bolsa de valores, como ele sempre foi um néscio, não demorou muito para que o revés chegasse, duvido muito que ele tenha tido coragem de contar isso para aquela cachorrona, deve ter ficado caladinho, esperando o momento certo de poder contar, a morte até que veio a calhar, o livrou da humilhação. Novamente perdi a concentração no trabalho e minha depressão voltou, fui despedido e não tinha ânimo de procurar um emprego, minhas economias foram minguando e acabei tendo que sair da onde eu moravam fui para a casa da minha única parenta viva, talvez a única pessoa na terra e fora dela que poderia me dar abrigo, tia Agnes.
Ela me recebeu de braços abertos, não duvidei que ela faria isso por mim. Todas as tardes, quando ela voltava do trabalho(ela tinha uma lojinha de roupas), fazia um cachorro-quente delicioso para nós, eu ainda me recuperava mentalmente. Aos poucos comecei a recobrar as forças, já pensava na minha volta por cima, sabia que era capaz disso, tinha gabarito. Comecei a tomar conta da lojinha, fazia todas as tarefas administrativas e a lojinha começou a crescer, em pouco tempo ampliamos ela, estávamos no caminho certo e isso só fortalecia o meu ego, tinha agora uma nova perspectiva de vida, um real motivo para sonhar. Tudo caminhava as mil maravilhas até que o destino pregou uma nova peça, puxou o tapete em que eu pisava novamente, dessa vez sem piedade. Câncer, doença maldita, metástase, quando chega nesse estado já era, apenas se consegue um prolongamento da vida, poucos meses de desespero a mais, foi isso que acometeu a minha tia, começou no seio direito e rapidamente se espalhou, os médicos deram apenas alguns meses de vida, lutamos juntos contra a doença, ajudava ela em tudo, virei enfermeiro, pai, babá e orixá. Criei uma adoração pelas entidades que nunca acreditei, tudo em busca da cura, quando ela se foi, voltei a minha realidade descrente, essas forças não existem, mas na hora do desespero vale tudo. Gritos foram freqüentes em seus últimos dias, mas como que por um milagre, na véspera da sua morte ela parou de gritar, recobrou a consciência e conversou comigo, vou tentar me lembrar pormenorizadamente o trecho mais importante:
- Tia, a senhora melhorou milagrosamente, espero que tenha vencido a batalha contra a doença.
- Não seja estúpido, não melhorei, isso é o que chamo da melhora para a morte, o último sopro de vida.
Até à beira da morte ela me fascinava.
- Não diga isso tia, tenho certeza que amanhã estaremos juntos na lojinha e os médicos dirão que foi uma cura milagrosa algo nunca visto antes nos anais da medicina.
- Ok, agora me traga um copo com água que estou suando demais.
Corri na cozinha, algo me dizia que um milagre tinha acontecido, mas algo tinha uma birra comigo e andava me enganando. Cheguei correndo ao seu quarto, ela pegou o copo da minha mão e bebeu avidamente, começou assobiar e me pediu biscoitos, voltei à cozinha e trouxe rosquinhas, seu biscoito predileto, novamente pegou da minha mão e comeu com muita vontade, soltou um arroto e falou comigo:
- Sinto-me pronta para a morte, minha última refeição foi garantida.
- A senhora não pode morrer – gritei desesperadamente – é minha última parenta viva, sem você como que vou ficar?
- Não seja dramático, já sinto o cheiro da morte.
- E como que ele é?
- Não muito agradável, parece esterco molhado.
Nessa época eu nem imaginava como era o cheiro de esterco molhado, hoje eu sei, e ainda sei que o de galinha é o pior. Depois desse diálogo ela entrou em transe por alguns segundos e começou a gritar, a gritaria durou a noite e a manhã inteira, até que ela ficou rouca, tentou balbuciar algumas palavras, levantou os braços e morreu.
O calhorda não consegue me deixar em paz, novamente ele me atrasando no serviço, juro que eu consigo terminar a tarefa em que estou imbuído até o fim do expediente, quero deixá-lo com cara de bunda. Ele me pede para ir na padaria e trazer: pães, leite, biscoito recheado e um saco de 1kg de açúcar, fui sem reclamar. Cheguei na padaria imundo, os outros clientes me olhando torto e a atendente doidinha para se ver livre de mim, o ser maligno que andava poluindo o ambiente e espantando a freguesia, jogou o troco e a notinha dentro da bolsa em que colocou o açúcar e me enxotou de lá. Gostaria muito de colocar um plano nojento em voga, algo bastante corriqueiro em filmes, os ingredientes são produzidos por mim e a cozinha da loja está sempre aberta aos funcionários. Poderia abrir a sua geladeira e misturar um pouco do meu gozo no seu requeijão, ou então quando ele me pedisse pra fazer café, jogaria três gotas de porra ao invés de três gotas de adoçante, talvez um pouco de urina no seu refrigerante, catarro na sua geléia, um pouco de bosta no seu bolo de chocolate, enfim, essa nojeira toda. Quem sabe quando ele saísse, eu iria ao seu banheiro e escovasse o meu saco com sua escova de dentes. Mas sei que não terei coragem de fazer isso, perdi o destemor de outrora.
Minha história avançou de maneira inesperada e ainda nem me apresentei. Me chamo Gaspar Miller e atualmente conto trinta e dois anos, muitos diriam que ainda estou jovem e que poderei conseguir me reerguer, mas sei que nos últimos tempos enquanto pensava nisso, algo conspirava para que não desse certo. Minha atual situação é lamentável, estou a um passo de enterrar a minha dignidade pra sempre, mas antes era ainda pior. Após a morte da minha tia, comecei um processo de enlouquecimento. O velório dela só eu compareci e chamei o coveiro para mais um copo de cerveja, já estávamos íntimos. Herdei a lojinha de tia Agnes, sua casa, algumas jóias valiosas, a bicicletinha calói cor de rosa e suas parcas economias. Vendi tudo e comecei a gastar descontroladamente, tinha noites que saía com três garotas de programa ao mesmo tempo, dei várias festinhas regadas a bastante bebida. Como não tinha uma fonte de renda, a grana foi diminuindo até que fui despejado do quartinho em que morava, acabei na rua da amargura com dez centavos no bolso, minha mochila com algumas roupas e uma garrafa de vodca barata nas mãos. Mendiguei e catei latinhas de alumínio, papelão, garrafas de plástico para ganhar dinheiro e poder comer. Até fios de cobre eu cheguei a roubar, o risco de ser pego era grande, mas o dinheiro compensava. Nas ruas era muito comum se drogar e ficar caído na sarjeta de bêbado, acho que era meio do contra, nessa época eu não bebia, me mantinha sóbrio toda a parte do tempo e foi isso que certo dia me conseguiu esse emprego.
Vagava pelas ruas com uma barba enorme, devia medir uns oito centímetros, meu cabelo também estava enorme e cheio de piolhos, tinha muitas pulgas, minhas roupas estavam sujas e rasgadas, unhas grandes e sujas, a sola dos pés rachada, dentes pretos, um trapo em forma de gente. Um dia estava sentado na calçada descansando, tinha andado muitos quilômetros catando lixo, um cara dirigindo um carro importado perdeu o controle do veículo, subiu a calçada e por um triz não me atropelou, ele saiu rapidamente do carro praguejando, torcendo para que eu estivesse inteiro, estava correndo da burocracia e de problemas. Muitas pessoas tinham parado para olhar e, ele para mostrar que estava tudo sob controle, se abaixou e me ajudou a recolher minhas coisas, tentava dizer para que ele não se preocupasse com isso, que eu daria conta sozinho. Aliviado e querendo dar o fora o mais rapidamente possível, apertou a minha mão e me olhou nos olhos, fez uma expressão de reconhecimento e disse que achava que me conhecia. Me levou para tomar uma cerveja com ele. Conversa vai, conversa vem, descobrimos que fomos conhecidos no colégio, estudamos juntos nos últimos três anos do ensino médio. Ele me devia um favor e até brinquei que estava na hora de pagá-lo, ele riu e disse que iria me pagar. Nesse mesmo dia me levou em um salão e me pagou um tratamento: cortar as unhas, cabelo, barba, um bom banho, depois me levou no dentista, me comprou algumas roupas e por fim me arranjou um emprego e uma espelunca para morar, o emprego era em sua loja de plantas. No início eu achava que tinha sido um milagre, um golpe de sorte. Com o tempo descobri que não era bem assim, ele se mostrou bastante vingativo, nunca tínhamos sido íntimos no colégio e ele sempre invejou minha inteligência e capacidade, não deixou passar a primeira oportunidade que teve de me humilhar. Primeiro me ofereceu a rosa, para depois rir quando seus espinhos me ferissem.
Quando chove, aparecem muitas minhocas, as bichinhas ficam ouriçadas. Adoro o jeito que elas se contorcem enquanto as pego na mão, uma conferência agora foi armada, centenas ocupando a minha pá e em volta dela, encho a mão e me forço a ter coragem, qual será o gosto? Com certeza um leve gostinho de terra virá a minha boca. Certa vez vi um indiano comendo três potes bem grandes repletos de minhocas, isso em poucos minutos, a platéia assistia pasmada, vômitos entre os mais fracos, queria bater um recorde e pelo jeito conseguiu, não baterei recorde nenhum, muito pelo contrário. A carne de minhoca é bastante apreciada em alguns países, muito nutritiva, serve também como ração para outros animais. Uma vez rolou um boato, um daqueles boatos que de tanto que se repetiu, acabou se tornando verdade, que a carne do Mc Donald`s era de uma minhoca grande, conhecida como minhocuçu, mas modificada geneticamente, chegava medir mais de cinco metros e pesar duzentos quilos, a mentira veio a metro e quilo. Me imagino engolindo elas, um suco escapando pelos lados da minha boca, pedaços de minhocas entre os dentes, tapando buracos de obturação, agarrando na garganta, algumas andando pelo céu da boca, quem sabe achando um caminho e saindo pelo nariz, confesso que só de pensar em algo parecido teria desmaiado, mas sinceramente no momento não me importo, penso em acabar logo com isso, abro a boca e as aproximo determinado.
No segundo em que precede o momento derradeiro, esse segundo acaba se estendendo em demasia, como se o tempo entendesse que eu precisava recordar algumas coisas e, ele em sintonia comigo, transformasse esse momento em uma volta completa do ponteiro pequeno de um relógio com a bateria fraca. Me recordei do tempo em que era criança, das minhas observações, do mimo dos meus parentes, do olhar de inveja do meu irmão, meus avós que ainda não foram mencionados (morreram quando eu era criança), bons momentos como o melhor aluno, da popularidade com as meninas, de quando quebrei a perna de um amigo jogando futebol, do primeiro beijo, primeira transa, de quando furei a mão com a ponta do lápis, do campeonato de corrida de tampinhas que ganhei. Lembro da minha fase adulta, estudos, primeiro emprego com meu pai, depois sozinho, o começo da queda, muitos enterros e velórios, presenciei muitos choros, quando encontrei com a minha ex-namorada pela primeira vez na biblioteca da faculdade, me recordo do prazer de bons livros lidos, dos bons filmes e peças de teatro, de quando comecei a enlouquecer, de tia Agnes, a pessoa que mais representou algo na minha vida, suas últimas palavras, ainda lembro como se fosse hoje “não muito agradável, parece esterco molhado”. Lembro daquela criança que roubei um salgado, que a fome dói, que o mundo não é justo, que os ricos podem, o olhar de nojo da esnobe senhora rica, dos carros que não desviam das pobres criaturas, de como a sociedade fede, do tudo é permitido. O dia em que cheguei na loja, nem sabia o que era forração, hoje cito algumas: cinerária, impatiens, cravina, pêlo de urso, colleus, beijo turco, irezine, hemigrafi, pingo de ouro, lantana e o meu preferido: Tagete e etc. Do nome de árvores: flamboyant, pau rei, jequitibá, fedegoso, ipê amarelo, do nosso pau Brasil, das frutíferas, inúmeros arbustos, ou seja, todas as recordações no segundo em que levantava a mão para trazer as minhocas a minha boca. Lágrimas começaram a escorrer e eu gritei:
- Que Deus me puna ou o Diabo me prestigie!
Foi quando uma forte luz brilhou...