O RELÓGIO TRANSFORMADO
Recomposto do susto dado pelo ladrão, aquele rapaz, escolhido para servir à pátria compulsoriamente, não reagiu à investida do meliante. Seu relógio que pertencera ao avô do pai, ou seja, ao seu já falecido bisavô, era uma relíquia de família.
Filho de uma tradicional família de italianos, não se estranhava de aquela relíquia ser atribuída sempre ao primogênito. De modo que nunca se soube que algum dos mais novos tenha ficado enciumado por não ter sido agraciado. Era, por assim dizer, uma certeza a quem se destinaria aquele tesouro familiar, e por isso não se fazia surpresa nem, tampouco, suspense. O fato é que ao completar dezoito anos, o aniversariante tornava-se guardião daquele talismã.
Prudente como era esse meu amigo, e mesmo tendo em conta que aquele valioso objeto, mais do que valor financeiro, possuía um inestimável valor sentimental. E até onde se sabia, aquele relógio estava na família por mais de setenta anos e, considerando que valorizar antigos objetos não é uma das nossas características, setenta anos numa mesma família não era coisa de se desconsiderar.
Assim mesmo, e seguindo a regra da sobrevivência, meu amigo não reagiu. Entregou o que lhe fora exigido salvaguardando sua vida.
Os meliantes, um pleonasmo para ladrão, nervosos mais do que meu amigo vítima, entorpecidos pelo medo em sofrerem uma reação ou mesmo de serem surpreendidos pela polícia, se dividem pela rua. Eram três. E cada qual toma um caminho diferente para não chamar a atenção. Ao dobrar a esquina, um dos larápios dá de cara com a polícia, que fazia sua ronda preventiva, e se põe a correr. Desobedecendo ao comando de “pára” e vendo-se alcançar pela patrulha, resolver investir com tiros. Meu amigo que acompanhara tudo à distância, vê quando, já sem munição, o capturado ladrão era colocado dentro da viatura.
Dirigindo-se aos policiais, se identifica e denuncia o roubo há pouco vitimado. Apontando para o xilindró, reconhece a assaltante que estava com seu relógio no bolso. Levados para a delegacia mais próxima, depois de uns “solavancos” no larápio, e defronte à autoridade policial, o delegado de plantão, meu amigo reafirma o que dissera aos policiais. Feito o demorado boletim de ocorrência e dispensados pelo delegado, todos deixam a delegacia. Já à rua, meu amigo se dá conta que não retirara o relógio que lhe fora roubado e a razão por estarem ali. De retorno ao distrito policial, pede para que chamem o delegado. Duas horas depois, chega o senhor delegado que saíra para jantar, e surpreso pela presença daquela pessoa que acabara de sair da delegacia, pergunta o motivo do retorno. Confrontado com a resposta que o motivo da volta se devia ao desejo de levar seu relógio, a autoridade policial sem meias delongas lhe informa que o objeto recapturado, de tão bonito que era, passou a ser seu e que qualquer reclamação deveria ser feita na corregedoria. Meu amigo ficou mudo. E sem entender nada, tentou argumentar que era um relógio que estava na família há mais de sessenta anos. Que tinha pertencido ao seu pai, seu avô e bisavô e que pretendia passar ao seu filho mais velho quando completasse dezoito anos.
E “lamentando que não pudesse fazer nada”, o delegado manda, aos gritos, meu amigo sair da delegacia e o ameaça de que se não calasse a boca, seria autuado por desacato.
Esse seria um final esperado, mas meu amigo, ciente dos seus direitos e consciente que qualquer agente público está ali para lhe atender, e bem, procurou a corregedoria. Um procedimento foi instaurado e condutas investigadas.
Comprovado o ocorrido, meu amigo não recuperou seu relógio, mas conseguiu que aquele delegado fosse destituído do cargo. E hoje seu filho, pai de um garoto de treze anos, não continua a tradição, mas conta essa história como lição do seu pai e sabe que será seguido pelos próximos que virão. E uma nova tradição se instaurou e esperamos que repetidas por tantos quantos tomarem conhecimento.