MESTRE-ESCOLA DE BRASÃO

Vivia ruminando vírgulas e empilhando papéis burocráticos numa pasta muito bem asseada e cuidada. Ali, dentro da pasta vermelha do prof. Osório, dormiam ofícios, memorandos, declarações, exposições de motivo, relatórios, aquelas geringonças todas de que se fartam os nossos três serviços públicos. O velhote rabiscava notas à mão, depois ia passá-las a limpo na máquina, invariavelmente aquelas antigas marcas Underwood, Remington e Olivetti. E, mais resignado que satisfeito com o seu nobre mister, merendava burocracia pedagógica. Obviamente que, como tônica, sempre jantando esperanças de um salário melhor, assim como todo servidor / serviçal das máquinas públicas.

O prof. Osório era, naquele colégio estadual, uma espécie de clínico geral, ou seja, a versão respeitosa do “burro de carga”, sobretudo se o camarada nem era médico, mas um metódico e afastado mestre-escola das salas de aula, claro que por idade provecta, porque competência didático-pedagógica o velho mestre tinha para dar, vender e emprestar. Naquelas lonjuras de tempo, ele já era um especialista em Geografia e História. O homem era sábio: sabia o que o sabichão não sabe.

Ele redigia toda a correspondência oficial, para a direção da unidade escolar, que a rubricava com muito gosto, sem, sequer, opinar por uma vírgula. E erros, mesmo, não os havia. O texto de mestre Osório era limpo e escorreito. Como já foi dito: ofícios, portarias ou declarações, requerimentos, tudo, enfim, no maior asseio gramatical. Além desta competência letrada, ele tocava a sirena, supervisionava transferências e fichas de matrículas, tudo, tudo, numa boa. E para que secretária ou diretor pedagógico?

Além do quê, fazia e pregava cartazes, atendia ao telefone, ali nos conformes da proficiência. Casos de indisciplina? Era ele quem, com brandura de avô coruja, aconselhava o aluno-problema, e o fazia puxar à realidade. Enfim, “Seu Osório”, como alguns o chamavam, era pau para toda obra.

E viesse pai ou mãe de algum escolar atrevido ter-se ao colégio, que primeiro teria que se haver com o confessor, com o ouvidor, vale dizer, o prof. Osório. O resto todo do estabelecimento era pinto, posto que os senhores pais, antes de tudo, queriam era o aconselhamento líquido e acertado do “Seu Osório”. Alguém só ia mesmo à sala do diretor de faz-de-conta, se bem o desejasse, ou por teimosia, pois tudo desaguava, ali, na foz da pessoa do mestre de Geografia. Ensinara, longos anos, nos dois colégios públicos das elites de Fortaleza, inclusive no Liceu do Ceará, que tinha foros de universidade. Assim, faltasse professor de qualquer disciplina, lá o bom homem estaria para suprir – e muito a contento – a lacuna do professor faltoso. E, aí, nos momentos de precisão, surgiam as arejadas aulas de regras de bem viver, estradas compridas de educação moral e cívica, coisas assim.

Ainda na ativa, campeando em salas de aula, servira também na Escola Normal, outra casa de educação das elites fortalezenses, àquela época. Todavia, ao encostar as botas da regência, primeiro foi parar no “beleléu” da dita escola. Depois, aos trancos e barrancos, sem regência fixa, foi dar em diversas escolas da Capital, justamente no malfadado beleléu. Isto é, como burro de carga. Melhor dizendo, ainda, pau para toda obra. Sempre o primeiro a chegar à escola, o último a deixá-la. Sempre. Dedicado, pois, ao que fazia, sem uma falta no seu tirocínio. Mais que isto: abnegado.

No entanto, coitado, tinha uma mania horrível, uma ideia fixa de só ir comprar pães, ao final da tarde, lá em Parangaba, onde ele residira durantes anos, sendo que agora domiciliado na distante Maranguape, a famosa “Chico City”, do ex-programa humorístico de Chico Anísio, da TV Globo. Então, dentro de paletó que lhe ia ao joelho, o mestre de Geografia metia-se num primeiro ônibus, comprava uma braçada de pães, depois pegava outro lotação para Maranguape. Na brincadeira de pegar dois ônibus para ir comprar pães, um dia, o prof. Osório, na subida do transporte lotado, ficou sem a carteira forrada da grana do mês, pois havia recebido o vil metal, via pagamento do Estado.

Sofrivelmente culto, cidadão pacato, porém resignado, quase maltrapilho. Um mestre com as virtudes, na certa, de um bom professor. Contudo, um aniquilado pelo mister que exercia, historicamente uma nobre função, relegada ao desprezo oficial, desde Cabral a Lula da Silva. Quero dizer, um tipo sempre encolhido no seu miúdo formato. Mas ainda vestia paletó e gravata, trambolhos que lhe batiam lá embaixo, nos joelhos. Um terno, a bem dizer, quase sem cor, é verdade. E ainda não lhe bastasse ser ele, todo o homem, pouco mais que metro e meio de gente, às vezes, o prof. Osório aparecia na escola sombreado com um anoso chapéu de massa, igualmente como o terno: sem cor. Mesmo assim, dir-se-ia que, pelo devotamento à causa do ensino, ele foi um mestre-escola merecedor de brasão, bandeiras e lauréis.

Fort., 17/10/2009.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 18/10/2009
Reeditado em 18/10/2009
Código do texto: T1872610
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