DECLARAÇÃO AMOROSA
De uma das muitas choperias do shopping de terceira classe, o dom-joão corujava, lá do outro barzinho fronteiriço, a figura bonitona de uma jovem solitária. Tipo feminino de vitrina, tamanho família. Mais que isto: modelo de verão, talvez rainha do caju. Coisa assim, tanto a moça enchia a vista. E também com caneta de intelectual.
Sentada à mesa, e tão bem estabelecida, parecia uma fêmea do jacaré, à margem da lagoa. Metida no seu colete escarlate, à moderna, aquela fruta, sob os discretos relâmpagos das placas de néon, bebia chope e escrevia que escrevia, em lenços de papel. Mas quem saberia o quê? Provável que garatujasse poemas. Algumas tracejadas com mão hábil e – vapt! – cálida golada da bebida geladinha ia-lhe dar à boca. Diga-se com justiça: boquinha linda, miúda e sensual, a ver-se de longe pela maqueta do rosto, que também era linda. Belezura de fisionomia.
Imaginando tratar-se de uma gatinha romântica, quiçá até poetisa, o moço da espreita interessou-se com força pela distinta dita-cuja. Ele próprio – José – um sonhador incorrigível. Vez ou outra, de veneta, dava de andar às voltas com suas musas, coisas da paixão namoradeira e da poesia, pois José dava-se a lavrar alguns versos. Porém a lonjura e o ângulo em que ele se achava entronado, tendo várias mesas e bebericadores no meio, tudo isto contribuía para que o assédio em esboço do atrevido, ainda mais à distância, não se cimentasse, efetivamente, no chão da certeza.
Então, montado na dúvida, mas nem por isto menos conquistador, José encarnou-se de galã de novela e aterrissou de escriba. Lá do seu pedaço de mesa, rabiscou o que poderia ter sido o prefácio de um belíssimo romance de amor. E aí, também, José enterrou tinta, pra valer, nuns guardanapos. Era a nobre e mais pura materialização dos seus sublimes sentimentos – assim conceituou e mediu o dom-joão dos pobres.
“Garota X, o que tanto aí escreves? Filosofia, poemas, filigranas de sonhos, ou, talvez, retalhos da tua alminha cândida... Vejo-te, daqui, ao longe, e à surdina, por isso nem sequer pousaste, ainda que de leve, os teus olhinhos neste teu maior abandonado, que sou e estou, agora. Também, sequer, ainda os divisei, se são olhinhos azuis ou cor-de-rosa.
Ah, deveras te gostei da escultura. Da tua silhueta e postura de escritora oriental, russa, sueca, talvez grega. Nem imagino, assim meio à turbulência de um shopping ocidental, onde o que impera é só a futilidade. Esta minha, de agora, inclusive. Posta em sossego, tal diria Camões, és e tu estás o cenário ideal para abrigar uma versão atualizada do filme “Romeu e Julieta”. E não? Linda é a tua lindeza, bela desconhecida.
Mas, e o que mesmo anotas, aí, à fugacidade do papel? Achei, mas continuo a te observar, aqui, da minha toca de beira de copo, a tua autenticidade de uma bela perua liberada. Bravo! Viva a tua individualidade. E incluo a teu cabedal, sem favor algum, os teus suaves meneios de tórax que, vez em vez, estás a empreender, como se fosses bailarina. Quando te ergues da escrita, acalantas um samba ou chorinho de corpo, muito bamboleado. E é sempre assim, toda vez. Será que tu és movida à eletrônica nipônica? Talvez peça de arte animada, em forma de ser humano? Estou encantado, senhorita.
Contudo, minha cara linda, que tal nós nos inserirmos no coletivo? Por exemplo, aí, tu e eu, numa mesma página de nós dois. Ou, então, eu e tu, aqui, nesta mesma mesa, juntos. O inferno é estarmos sozinhos. Não basta que sejas apenas deslumbrante paisagem para os meus olhos. Vem morar, de malas e cuias e matalotagem, na casinha do meu peito esquerdo.
Finalizando, e já com doída saudade, gostei de ti, completamente. Eu me esbaldo por toda ti. Do teu jeito de ave solitária, com a proposta objetiva de te tornares mais solidária e sociável, mas, aqui, a meu lado. Todo teu, desde o futuro de já e já, se me aceitares carona na boleia deserta do coração. O teu menino grande, Y.”
Ao fim do seu jornal, no entanto, quando José começou a ingerir coragem, em mais uma caneca de chope, para ir entregar a declaração amorosa ao garção, a fim de que este lhe servisse de estafeta, um personagem importuno entra em cena. Abanca-se, ao lado da garotona, aquele zebu gigantão e bem massudo, de, aproximadamente, oito arrobas por 1 metro e 95. E aí José desmoronou-se, por inteiro, dentro das nádegas. Caiu na real e ficou num mato sem cachorro.
Fort., 17/10/2009.