O dia em que a chuva parou

Naquela terra de ninguém, onde nada tinha graça, lugar que nem gato e até cachorro queria ficar, Felismino resolveu parar. Vinha de longe, com a família todinha junto, em cima da carroça, praguejando, xucro e teimoso qual uma porta. Mandava na mulher e nos filhos que nem se manda em animal. Barba, cabelo por fazer, banho por tomar, aliás, nem sabia mais o que era banho. Se beber água já era um luxo, imagina desperdiçar em banho. Um filho e uma filha eram os sobreviventes e herdeiros da tristeza, já que dois tinham morrido ainda bebês. A mulher tinha trinta anos, mas parecia bem mais. Vinha também um primo, frágil o rapaz e sensível. Não tinha a rudeza de Filismino, mas tinha posições firmes, sem alterar a voz. A esposa, Vandete, admirava o rapaz que parecia entendê-la tão bem. Raul era o seu nome. Andava com Filismino desde que seus pais morreram numa emboscada por causa de terras, o primo explorava seu trabalho, ridicularizando por sempre. Apesar de aparentemente fraco, Raul era disciplinado e com isso produzia a contento, pena que a seca não deixava plantação nenhuma ir pra frente. Filismino e Vandete pareciam ciganos, hora aqui, hora acolá, dormindo em barraca, feita de couro e trapos de pano. Os filhos não sabiam ler, apenas trabalhar. Engraçado que Raul andava triste, cabisbaixo, parecendo sei lá o que. Os meninos já tinham observado e sempre perguntavam se ele tinha alguma coisa, se estava doente, e nada de resposta. Filismino o mesmo de sempre, grosso, violento e sem noção. Parar naquele lugar parecia ser o fim, talvez isso estivesse afetando Raul, Vandete nem sonhava falar alguma coisa, morria de medo do marido. Filismino a tinha roubado da família quando ainda tinha treze pra quatorze anos, e ninguém ousara vir atrás, tamanha era a fama de mal do homem. Um dia chegando à cidade viu a mocinha indo à venda, e de lá sair com um embrulho debaixo dos braços. O brutamonte cuspiu de lado, tirou o chapéu meio rasgado e sujo, coçou a cabeça e de pronto pegou a menina pelo meio levou-a até sua carroça e se foi, os que ouviram os gritos desesperados, fizeram que não era com eles. Vandete sem outra chance conheceu assim o seu marido. O primeiro e o segundo filho morreram, depois veio o filho Filício em seguida a menina Filícia. Esses “coitados” não tinham descanso, apanhar lenha, ir atrás de qualquer caça, ajudar o pai no trabalho para outros, dois bodes e cinco cabras os acompanhavam. Uma madrugada, trovões há muito não ouvidos, junto com relâmpagos que da noite fazia dia, começou a anunciar a chuva que viria. Filismino levantou-se e riu, com dentes e sem dentes, ruins e cariados, riu e se riu. Maldisse e bendisse como se não soubesse o que dizer. Olhou para o lado procurando a mulher, não estava, pensou: mas diacho onde está Vandete? Qual nada. Vandete tinha se ido com Raul, o frangote como Filismino o tratava, a tinha levado, não para ele mesmo, mas levou-a para ser bem tratada como merecia, Vandete foi enquanto ainda lhe restava um mínimo de coragem, Raul fez questão de levar as crianças também. Filismino que nunca tinha sido afrontado, nem viu a chuva chegar, para ele, naquele dia, a chuva parou.