Mansin

O animal usava as mesmas ferraduras há muito tempo. Nunca tinha feito uma reforma sequer e, justamente por isso, mancava, sentia dores. Seu dono, outro animal, só sabia montar, colocar carga no lombo do bicho e cutucar nas esporas. Era triste de ver, mansin, esse era o seu nome. O casco trincado nas pedras. As feridas na barriga. Mas não tinha por onde, cedinho, antes do sol raiar, até o galo ainda dormia, já tinha que estar pronto para mais uma labuta, e de noite, depois que todos já estavam tranqüilos, todo esfolado, aí que vinha a comida, era o último a ser alimentado, só capim nada de ração. Fora desprovido pela natureza e não servia para outra coisa a não ser capacho do dono e servir aos outros animais, esses sim tinha vida de “rei”, bem tratados, banho todo dia, até que isso não sentia falta não, mas ficar só comendo, recebendo ração, do bom e do melhor, e ainda desfilar para o povo ver tamanha boniteza, isso sim é que era bom. Mas qual ninguém olhava pra ele não, a não ser para bater, que era para não errar. Uma bela noite teve que carregar as traia até mais tarde, a exposição estava no auge. Um peão já alto das pingas que tomara e não se deu ao trabalho de ir até um reservado para urinar, veio sorrateiro para perto de onde o infeliz mansin,estava amarrado com a pesada carga sobre as costas. Pitava um cigarro de palha, desses enormes, mal feito e fedorento, colocou uma mão na parede, abaixou a cabeça e começou a abrir o zíper para aliviar sua necessidade. Chapelão na cabeça. O vento soprava e isso fazia com respingos de urina fosse cair em suas patas. Pensou consigo mesmo: - se eu não estivesse amarrado iria dar um coice nesse porcalhão. Todo dolorido, sem nenhum reconhecimento, com fome, sede e agora isso, já era demais. O vento, então, soprou mais forte e o chapéu do “mijão” ameaçou voar, ao tentar pegar deixou o cigarro cair sob a palha seca do chão, não se apercebeu de tão bêbado, quando conseguiu pegar o chapéu, bem longe de onde estava, ouviu a gritaria, o fogo tomara conta de tudo, mas o feno, a palha, a madeira, queimava rápido. Os bombeiros foram ágeis, os animais que iriam participar da exposição foram os primeiros a serem salvos, mas mansin não, pois ficou por último e não teve chance, com ele se foi também a sede, a fome, as dores, as surras e finalmente as velhas ferraduras que derreteram.