O MORTO VIVO
O MORTO VIVO
Há poucos dias, após uma tranqüila noite de sono em meu aconchegante cantinho na roça, acordei com o cântico dobrado do sabiá laranjeira. Um dos mais importantes e fiéis amigos, que desde o século passado habitam minha pequena fazenda. Um presente da natureza, conquistado através do carinho, que há vários anos minha esposa e eu, temos dispensado aos pássaros e animais silvestres que habitam nossa propriedade. Somos visitados pelas siriemas, e diversas espécies de pássaros que alimentam em nossa porta nos comedouros que sempre mantemos abastecidos.
Aproveitei a oportunidade para minha caminhada rotineira, um hábito praticado há vários anos nos arredores do Engenho, minha terra natal, distrito situado no município de Bom Despacho.
Desta vez realizada por trilhas onde não pisava a mais de duas décadas.
Esta quebra de rotina trouxera-me as recordações do trabalho e da luta pela sobrevivência, desempenhada durante o período que atuei como trabalhador rural, minha principal atividade naquela época. Em conjunto com esta lembrança, veio também a recordação dos amigos de jornada, dos fregueses que me deram suporte como clientes, no comercio da vendinha de roça instalada em um cômodo de minha residência, minha alternativa na complementação do orçamento familiar.
Dentre eles o Aristeu, uma figura, quase esquelética, mas de grande coração. Trabalhou em uma carvoaria, à margem da estrada Picão Engenho. Aristeu, casado com dona Maria, uma senhora bondosa e amiga de todas as pessoas que dela aproximavam. Comeu o pão que o diabo amassou, no trabalho da carvoaria, e com o vicio do marido alcoólatra. Foram inúmeras as preocupações com a ausência dele em suas bebedeiras, e dona Maria agarrada no serviço, mantendo o compromisso para com o patrão.
Algumas vezes eu o apanhei bêbado nas ruas do Engenho, levando-o até sua residência. Era um verdadeiro pé de briga na sua chegada, mas aquele era um casamento mantido com os pregões da seriedade, e dona Maria nunca o desprezou. Levou seu compromisso até o ultimo estágio, no falecimento do marido, aliás, o segundo falecimento, por que o primeiro, conforme ele afirmava, conseguiu driblar São Pedro.
Certo dia executando seu trabalho nos fornos, Aristeu caiu, correu todos, a socorrê-lo, constatando que o mesmo estava mortinho da Silva. O operador de um trator que abastecia de lenha a Carvoaria, saiu em disparada até a casa do patrão, a fim de providenciar, pericia e funeral. Logo após, a noticia correu a vizinhança onde o falecido era muito querido.
De repente perceberam que aquilo foi um longo desmaio, o bicho estava mais vivo que nunca. Deitado, maribundo em seu pobre leito, no quarto mal iluminado, imagine caro leitor, quanto susto a todos que chegavam.
Como a noite chegou rápida, com ela também inúmera condolências. Estava um pouco frio fizeram uma fogueira, e no seu entorno várias pessoas, dando a impressão de um veadeiro velório. O visitante chegava dirigia para o rancho tirava o chapéu entrava e saia correndo. Aristeu deitado em seu pobre leito, quase arrebentando de rir. Quando chegou um policial, conduzindo um farmacêutico, substituindo o Medico, para a autópsia! Os espectadores todos à volta da fogueira! O defunto que a esta altura desempenhava muito bem o papel de ator principal, sozinho no rancho.
O farmacêutico pergunta: - e o Aristeu... Dona Maria?
--Está no quarto pode entrar! Entrando na sala do rancho... Do quarto mal iluminado o defunto suspendeu as duas mãos num gesto mais que natural, disse: -- chega pra cá! O moço arrancou de marcha à ré passou por cima de três ou quatro pessoas agachadas, rachou a fogueira no meio meteu o peito na cerca de arame, pegou o rumo do Engenho e se mandou em disparada! O policial o alcançou a mais de um quilometro do local.
Na sua chegada esqueceu-se de avisá-lo que a morte do Aristeu, era apenas mais uma de suas brincadeiras, praticadas ao longo de sua carreira de alcoólatra cômico. Um papel que desempenhou muito bem, antes de suas duas mortes.